Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de abril de 2011
Não foram poucas as transformações pelas quais a civilização passou ao longo do século XX. Já em seu início, a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa começaram a redesenhar os contornos de um mundo que nunca mais seria o mesmo. E as artes não passaram incólumes a essas mudanças. Em suas diversas vertentes, a busca por novas linguagens e meios de expressão fez-se presente, paralelamente ao surgimento de uma indústria cultural que, apoiada nos desenvolvimentos tecnológicos, em breve faria da obra de arte objeto de consumo, obrigando os artistas a redefinirem seu papel na sociedade.
Foi em meio a esse ambiente de contínua ebulição que o compositor Igor Stravinsky deu seus mais decisivos passos e escreveu suas mais importantes obras, que acabaram por deixar marcas profundas em diversas gerações. Stravinsky foi uma espécie de andarilho, tendo viajado por diferentes países, estabelecido residência em pelo menos quatro e adquirido duas cidadanias estrangeiras (a primeira na França e a segunda nos Estados Unidos). Isso, contudo, não fez com que ele se desconectasse de sua identidade primordial, ligada a uma Rússia anterior à União Soviética, que ficou para sempre no passado.
As diferentes paisagens que testemunhou ao longo da vida parecem ter se refletido em sua música. Stravinsky experimentou diversas técnicas e percorreu diversos estilos ao longo de sua carreira, o que resultou em uma obra poliestilística, heterogênea e deliciosamente irresistível. Apesar disso, sua obra está marcada por uma espécie de DNA musical muito característico.
Igor Fiodorovich Stravinsky nasceu em 17 de junho de 1882 em Oranienbaum, pequeno balneário no Mar Báltico, tradicional local de veraneio frequentado por famílias mais abastadas da Rússia. Foi com sua mãe Anna Kholodovskaya, jovem de ascendência nobre, que o jovem Igor teve suas primeiras lições de música ao piano. Entretanto, sua inserção no mundo musical deveu-se sobretudo ao pai, Fiódor, um dos mais proeminentes baixo-barítonos de sua geração, que fazia uma carreira de sucesso no tradicional Teatro Mariinsky em São Petersburgo.
Apesar desse ambiente, não foi antes de completar dezessete anos que Stravinsky demonstraria um interesse sério pela música. Quando, por fim, decidiu-se pela carreira de compositor, ele já estava com vinte anos, velho demais para ingressar nos cursos regulares do Conservatório de São Petersburgo. Enquanto fazia seus estudos de direito na universidade local, Stravinsky realizava suas primeiras composições.
Foi com Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) que Stravinsky realizou a base de sua formação composicional, participando dos famosos saraus semanais promovidos pelo mestre, que paralelamente o orientava de forma informal. Na mesma época, Stravinsky frequentou uma série de concertos conhecidos como “Noites de música contemporânea”, nos quais travou contato com artistas menos conservadores do que aqueles dos saraus de Korsakov. Foi em uma dessas apresentações que Stravinsky conheceu Serguei Diaghilev (1872-1929), empresário do meio artístico e dono da companhia Ballets Russes. Diaghilev foi responsável pela encomenda de uma série de obras que se tornariam marcos da música moderna e que viabilizaram de forma especialmente importante a carreira de Stravinsky.
Em finais de 1909, trabalhando em São Petersburgo em projetos musicais menores, Stravinsky recebe um telegrama de Diaghilev desde Paris. Preocupado com a pouca inventividade da parte musical de suas produções, o empresário convidava o compositor a escrever, em cima da hora, a música para um novo espetáculo baseado em uma lenda russa. Parece que Diaghilev foi especialmente enfático quanto à necessidade de se realizar algo novo em termos musicais. Assim, na noite de 25 de junho de 1910 estreava na Ópera de Paris o que é considerado o verdadeiro “opus 1” de Stravinsky: a partitura para o bailado O pássaro de fogo. O compositor – até então um absolutamente desconhecido e detentor de um catálogo musical irrelevante – viu-se catapultado à condição de celebridade, passando a travar contatos com importantes nomes da cena artística local, tais como os compositores Debussy, Ravel e Satie e os escritores Claudel, Proust e D’Annunzio.
Apesar de ter fixado residência com a família na Suíça, era em Paris onde Stravinsky articulava suas atividades profissionais. A Cidade Luz era, naquele momento, um lugar aberto a novas propostas artísticas e com várias oportunidades profissionais. Tanto que em menos de um ano os Ballets Russes estreavam outra produção com música de Stravinsky, Petrushka, que experimentou um sucesso tão grande quanto o anterior.
Com respaldo de seu empregador, aliado à segurança do sucesso obtido com as obras precedentes, Stravinsky viu-se encorajado para ultrapassar fronteiras em um novo projeto dedicado aos mitos e ritos da Rússia pré-histórica. Com um discurso rítmico vertiginoso e uma orquestração exuberante, envolta por teia polifônica densa e complexa, a música para o bailado A sagração da primavera protagonizou um dos maiores escândalos da história das artes. Estreada em 29 de maio de 1913, o Théatre dês Champs-Elysées foi palco de rumorosos protestos e violentas discussões. À parte seus poucos mas fiéis defensores, Stravinsky foi arrasado pela crítica e pelo público. A pressão foi tamanha, que acabou minando sua frágil saúde, fazendo com que o compositor tivesse de ser internado em um hospital por cinco semanas.
O que naquele momento surgiu como força devastadora, não muito tempo depois foi revertido em combustível para a reputação do compositor. Alguns anos depois da tempestade que assolou sua estreia, a Sagração já era recebida com sucesso e Stravinsky reconhecido como um dos principais artistas de seu tempo.
Em 28 de junho de 1914, quando um jovem sérvio assassinou a sangue-frio o herdeiro do trono austro-húngaro, iniciou-se uma série de conflitos que só terminaria com outro gesto igualmente simbólico: a queda do Muro de Berlim, em 1989. Foi durante essas décadas de conturbação social em que Stravinsky realizou sua carreira. Para proteger sua família dos conflitos armados, o compositor viu-se forçado a estabelecer exílio permanente na Suíça durante a I Guerra Mundial (1914-1920) e, durante o segundo conflito mundial, nos Estados Unidos, para onde mudou-se em 1939 e onde residiu até o fim da vida.
Apesar de não ter repetido o rumor causado pelos seus primeiros bailados, Stravinsky compôs diversas obras fundamentais do repertório erudito. Ao visitar os principais gêneros da música clássica – sinfonias, concertos, óperas e oratórios, entre muitos outros – acabou por reinventar a todos. Insistentemente rotulado como neoclássico, o termo é uma redução grosseira de sua imensa capacidade criativa e inventividade musical. Pois, ao contrário de muitos de seus contemporâneos que se abrigaram em algum dos “ismos” da modernidade (impressionismo, dodecafonismo, atonalismo, etc.), somente Stravinsky tornou-se um adjetivo próprio. Assim, não faltam por aí inúmeras amostras de ecos stravinskianos para confirmar essa afirmação.
Linha do tempo
1882
Igor Stravinsky nasce em Oranienbaum, norte da Rússia
1902
Conhece o compositor Nikolai Rimsky-Korsakov, que passa a orientá-lo
1906
Casa-se com Katya Nosenko, sua prima, com quem terá quatro filhos
1910
Deixa a Rússia e estabelece residência na Suíça
1913
Rumorosa estreia da Sagração da primavera
1918
Exilado por conta da I Guerra Mundial, compõe A história do soldado
1920
Retorno a Paris; engata um romance extraconjugal com a estilista Coco Chanel
1921
Torna-se amante da dançarina Vera de Bosset, com quem se casará após a morte de Katya
1930
Compõe a Sinfonia dos Salmos, encomendada e estreada por Serge Koussevitzky
1939
Fugindo da II Guerra Mundial, muda-se para os Estados Unidos
1945
Conhece Robert Craft, que se tornará seu assistente, biógrafo e um de seus principais intérpretes
1957
Estreia do balé Agon, primeira obra na qual emprega procedimentos dodecafônicos
1971
Morre em Nova York, em 6 de abril