Tamar Sagiv e um violoncelo que assume as dores do mundo

por João Marcos Coelho 29/12/2025

Álbum de estreia da violoncelista israelense é um confessionário musical que não deixa nenhum ouvido indiferente

Quando experiências de perda pessoal, luto coletivo e esperança se misturam no mesmo ser humano e ele ou ela for músico, seu modo de extravasar por meio de seu ofício é inevitável.

Foi o que aconteceu com a jovem violoncelista Tamar Sagiv. E, em vez de estrear em gravações com repertórios arquiconhecidos que a legitimassem como intérprete, meio sem querer, ela compôs músicas que nasceram diretamente de sua dor misturada com esperança, um sentimento agridoce inexplicável. Radicada em Nova York, nasceu numa cidade ao norte de Israel. Estudou na Escola de Música Buchamnn Mehta da Universidade de Telaviv e depois na Escola Mannes, em Nova York, sob orientação de Matt Haimovitz.

Seu álbum de estreia é um confessionário musical que não deixa nenhum ouvido indiferente. Shades of Mourning (Sono Luminus), tons de luto, tem apenas 33 minutos e nove faixas. Vale a pena ouvir seu depoimento:

“Escrevo estas palavras enquanto o Oriente Médio, meu berço, minhas raízes, sangra. Não há palavras que possam descrever a dor, a perda e o sofrimento que vejo diariamente naquela terra e em seu povo.
Assim como eu, meus amigos, familiares e vizinhos que vivem do outro lado dessas cercas construídas para nos dividir carregam uma dor excruciante que se aprofunda à medida que as guerras continuam – uma dor que viverá nos corações e almas por gerações.
Eu queria que este projeto unisse as pessoas através da música. Meu avô, nascido na Síria e moldado pelas dificuldades, acreditou na paz até o último dia. Por causa dele, eu acredito na paz, e espero que esta seja uma crença que eu nunca precise lamentar.
A paisagem sonora do conflito – o silêncio repentino após o caos, a pulsação irregular da artilharia distante, aquele silêncio antinatural após a destruição – inevitavelmente encontrou seu caminho para a minha linguagem musical.
Essas experiências de perda pessoal, luto coletivo e esperança persistente se tornaram a base da música deste álbum, cada faixa explorando diferentes lados e nuances do luto”.

Fiquei impactado pela leitura deste texto da violoncelista quando a combinei com a audição de sua música. Por isso quero compartilhar com vocês o modo como ela verbalizou a necessidade vital de transformar em sons seu misto de dor, luto e esperança. É a razão pela qual reproduzo algumas de suas falas em entrevista à revista Strad: “Este álbum começou, sem que eu soubesse, no leito de morte da minha avó. Eu não percebia, naquela época, que a peça que escrevi enquanto ela dava seus últimos suspiros se transformaria em um álbum, nem sabia que eu era compositora”.

Na faixa-título, em formade passacaglia, o cello geme, chora e hesita entre saltos melódicos. Busca uma nota confortável, mas não acha. Tamar diz que assim se despediu de uma “mulher que moldou minha vida de maneiras que ainda estou descobrindo”. Aos poucos sua voz se entrelaça com as do instrumento. 

Roots, raízes, voz e cello arrancam forças da crença de seu avô nascido na Síria, que “sempre acreditou na paz, até o último dia de sua vida”. É evidente a forte influência  das linguagens de um Philip Glass, sobretudo no encorpado trio de cordas. Oito das nove faixas nasceram de improvisos, depois postos no pentagrama. A exceção foi o trio de cordas, em que seu violoncelo contracena com a viola de Ella Bukszpan e o violino de Leerone Hakami. Sozinho, o trio ocupa mais de metade dos 33 minutos do álbum. Os títulos dos movimentos indicam o estado de espírito de Tamar: E talvez você nunca tenha sido; Minhas Nuvens de Tristeza; O Fim dos Tempos; e Mundo Imaginário. O segundo, Minhas nuvens de tristeza, é não por acaso o mais encorpado, com quase 7 minutos. Este é, afinal, o sentimento dominante deste álbum: o da inevitabilidade do luto como destino permanente.

É uma obra-prima, grande música?  Não. Mas quando sentimentos individuais tão fortes misturam-se a sentimentos que têm em comum todos os povos do Oriente Médio, aí tenho certeza de que esta é música que vale a pena. Tamar Sagiv não “costurou” temas e melodias arquiconhecidos em uma salada déja-vu. Preferiu desnudar-se musicalmente. E isso a diferencia. E nos faz não só ouvir sua música, mas comungar de suas muitas dúvidas e dores, que não são só suas, são nossas, habitantes como ela deste planeta infelizmente cada vez mais conflagrado.


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A violoncelista Tamar Sagiv [Divulgação/Apar Parakhol]
A violoncelista Tamar Sagiv [Divulgação/Apar Parakhol]

 

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