Nos livros, a dança encontrou um tipo de permanência diferente. Se nos palcos e bailes seus movimentos desaparecem tão logo são executados, no papel eles se materializam enquanto palavras. Com isso, ela passa a existir para além da sua efemeridade.
Falar de livros de dança é, portanto, falar de memória, e isso se desenrola por muitos caminhos. A dança está presente em biografias e relatos de um determinado momento histórico, mas também em manuais sobre técnicas específicas, compilações de críticas a espetáculos e tratados teóricos que nos ajudam a refletir sobre como essa linguagem se situa no tempo e em relação com a sociedade.
Alguns dos lançamentos de 2024 exemplificam essas categorias – ou até o entrelaçamento entre elas. É o caso de Arte da presença / Presença na arte, no qual a veterana Sônia Mota mescla conteúdos autobiográficos com um mergulho na metodologia desenvolvida por ela em suas mais de seis décadas de dança entre o Brasil e a Alemanha, onde reside atualmente, após uma trajetória com passagens pelo Balé Real de Flandres, o Balé da Cidade de São Paulo e o Teatro de Dança Galpão.
Escrever, no entanto, não foi tarefa fácil. A bailarina, coreógrafa e professora levou 23 anos entre a redação da primeira linha e o ponto final. “Minha forma de expressão é o corpo, então demorei muito para descobrir como achar as palavras exatas para dizer aquilo que queria transmitir”, diz ela.
O processo foi apoiado pelo dramaturgo José Rubens Siqueira, mas Sônia fez questão de colocar as próprias mãos no texto. “Temos muitos jornalistas e estudiosos que escrevem sobre artistas. Respeito todos, mas, para mim, dançar é uma necessidade vital. Queria que essa história fosse explicada por alguém que sabe o que é isso.”
O afastamento dos estúdios e teatros devido à pausa forçada pela pandemia de Covid-19 contribuiu para a conclusão do projeto. Com apoio da Funarte, o livro foi editado de forma independente em uma tiragem de 600 exemplares, distribuídos gratuitamente durante eventos realizados em São Paulo, Salvador e Campo Grande. Em dezembro, ele estará disponível, igualmente de forma gratuita, em formato digital.
“Sou de uma geração que teve pouca coisa registrada em foto ou gravação. Então quis deixar esse material como um legado para tentar manter um pouco do que já aconteceu”, justifica.
O caráter documental também rege São Paulo Companhia de Dança: 15 anos (Editora Martins Fontes), mais recente publicação de uma série de oito volumes iniciada em 2009. Com forte aceno institucional, o livro reúne artigos de jornalistas, artistas e pesquisadores que tiveram suas vidas entrelaçadas de alguma forma a esse corpo estável mantido pelo governo do Estado de São Paulo.
O diferencial da nova edição, que teve organização de Inês Bogéa e Marcela Benvegnu, está em um bloco de contos no qual autores como Aline Bei, Joca Reiners Terron e Natália Timerman desenvolvem histórias inspiradas em personagens do dia a dia da dança profissional, renovando imaginários para um universo costumeiramente carregado de estereótipos.
Um outro tipo de documentação comum à dança é a reportagem. Joel Gehlen, que cobriu por décadas o Festival de Dança de Joinville pelo jornal A Notícia, vasculhou arquivos e fez entrevistas para compilar os 40 anos do popular evento catarinense em A engrenagem que impulsiona o giro da bailarina – Gestão da cultura: o caso do maior festival de dança do mundo (Editora Letradágua). Com prefácio do bailarino e coreógrafo Marcelo Misailidis, o livro pode ser obtido de graça (clique aqui para acessar o livro).
O ano fecha com outra obra nas livrarias. No dia 7 de dezembro, às 10h30, a São Paulo Escola de Dança, equipamento do governo de São Paulo, apresenta CorpoMapa, uma compilação de artigos encomendados a pesquisadores e à equipe pedagógica do espaço sobre temas que “conectam o corpo à cultura, educação e arte”, como antecipado pela instituição. Apesar de chegar ao público em versão impressa, seu lançamento será virtual, acompanhado pela realização de seminários temáticos.
Entre os novos trabalhos de dança de 2024, há ainda títulos com reflexões produzidas na universidade, como as realizadas por Isabel Botelho. Com recursos do Edital de Incentivo às Artes do governo do Estado do Ceará e de isenção fiscal via Lei Rouanet, sua dissertação de mestrado em psicologia se transformou no livro Dança de situação: um olhar para a dança a partir das políticas públicas em Fortaleza (Editora 7Letras – clique aqui para comprar).
Baseada em experiências pessoais e entrevistas com bailarinos, a autora aborda como as políticas públicas em seu estado embasaram vivências que impulsionaram novos projetos na cena artística da capital cearense. Isso confere à obra a dupla função de relatar um período e produzir conhecimento para inspirar mais ações baseadas em evidências.
Com o objetivo de dar visibilidade a produções científicas como essa, a Associação Nacional de Pesquisadores em Dança criou a Editora Anda em 2018. O projeto é tocado por um conselho editorial e tem foco exclusivo na publicação de estudos de pessoas vinculadas à associação.
A editora trabalha em duas vertentes. Uma delas é a partir de chamadas específicas, como a responsável pela coleção Danças do agora, que busca preencher lacunas na pesquisa em dança ao valorizar a diversidade de corporeidades do Brasil. Seu segundo volume acaba de ser lançado no Congresso Nacional da Anda, realizado no início de novembro, e pode ser baixado de graça no recém-inaugurado site da organização.
Outra forma de atuação da editora é sob demanda, quando é procurada pelos autores para ser a casa de seus livros. Nestes casos, a edição só é possível quando os originais recebem parecer favorável de um conselho científico internacional, um processo de respaldo valorizado pelas agências de fomento à pesquisa. O exemplo mais recente é Escuta: uma abordagem sensório-afetiva-afrorreferenciada, de Luís Silva.
A maioria das publicações tem formato digital e pode ser baixada sem custo. “Nossa intenção é fazer com que essa informação circule e seja acessada”, afirma Lucas Valentim, professor da Universidade Federal da Bahia e integrante do conselho editorial da Anda.
Para ele, o incentivo à publicação de novas pesquisas é um modo de fazer ressoar múltiplas vozes. “Hoje temos um cenário com mais pessoas discutindo sobre temas como a intercessão da dança com a cibercultura, danças populares e afro-diaspóricas, questões sobre gênero, deficiências, educação e a dança como ação política. Livros registram o pensamento sobre dança de um momento, e esse movimento tem ampliado bastante o cenário da produção de escrita.”
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