Moda e Dança: a tradução de um pensamento

por Redação CONCERTO 21/02/2024

Por Karla Dunder [Karla Dunder é jornalista formada pela Cásper Libero, com mestrado em Comunicação e Cultura pela ECA-USP e passagem por grandes veículos de imprensa como o jornal O Estado de S. Paulo, Record TV e UOL]

Dança e moda caminham juntas pelos palcos. Figurinos contam histórias, definem personagens. A roupa nos fala muito sobre o nosso tempo e na dança, sobre as ideias do espetáculo.

No Brasil do início do século XX, o Balé do IV Centenário, uma companhia criada no bojo das comemorações dos 400 anos de São Paulo, mestres da vanguarda paulista assinaram as trilhas dos espetáculos, assim como figurinos e cenário. Para a confecção da cenografia e figurinos foram contratados artistas plásticos como Cândido Portinari, Lasar Segall, Di Cavalcanti e Oswald de Andrade Filho e compositores como Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone. A ideia aqui era mostrar o espírito modernista e, em certa medida, como São Paulo estava à frente de seu tempo.

Em 2010, em Nova York, o diretor de figurinos do New York City Ballet Marc Happel, ao lado do diretor da companhia Peter Martins e da atriz Sarah Jessica Parker, decidiram convidar estilistas renomados para o New York City Ballet Autumn Fashion Gala. Mary Katrantzou, Thom Browne, Carolina Herrera, Valentino Garavani e Sarah Burton, representante da grife Alexander McQueen, assinaram figurinos para a companhia.

Música, coreografia, figurinos e iluminação formam um espetáculo único, coeso, onde cada elemento “dança” no palco com os bailarinos

Como a moda dialoga com seu tempo, os figurinos acompanham a história da dança e buscam o diálogo constante com a direção artística do espetáculo. Nesse sentido, a moda presente nos figurinos está em perfeita harmonia na criação de uma obra única, como ocorre nas criações do Grupo Corpo. Música, coreografia, figurinos e iluminação formam um espetáculo único, coeso, onde cada elemento “dança” no palco com os bailarinos.

Em Os duplos, os bailarinos da São Paulo Companhia de Dança sobem ao palco. Seus corpos parecem se multiplicar no espaço cênico. Corpos que se entrelaçam e, em alguns momentos, parecem se fragmentar. Uma experiência em que o movimento da dança se completa com a luz e o figurino, elementos que se somam para formar uma experiência única ao público. A coreografia de 2010 é assinada por Maurício de Oliveira e tem como foco a imagem do bailarino que se multiplica ao longo da cena. A coreografia está em constante diálogo com o figurino de Jum Nakao, com a iluminação e o espaço cênico criados por Wagner Freire e com a trilha especialmente composta por André Abujamra. Em Os duplos, Jum destaca que o seu papel como designer foi criar pontes com o público. Não há dança ou música ou figurino, mas um conjunto único capaz de mexer com a sensibilidade da plateia. 

“Os espetáculos mudam, nos marcam, são momentos mágicos que guardam um momento de encantamento com o público”, observa Jum Nakao. Para ele, o figurino, ou a moda, assim como os outros elementos que compõem o espetáculo funcionam como “pontes imaginárias e delicadas que conduzem à experiência de fruição do espectador”.

“Meu ofício, quando falo em moda na construção de um espetáculo, é pensar sempre na soma de linguagens para que haja a plenitude do trabalho do artista em sintonia com a direção, roteiro e iluminação” (Jum Nakao)

Dessa forma, discutir o papel da moda em um espetáculo de dança significa não perceber um ou outro elemento isoladamente, mas o todo. “Meu ofício, quando falo em moda na construção de um espetáculo, é pensar sempre na soma de linguagens para que haja a plenitude do trabalho do artista em sintonia com a direção, roteiro e iluminação.” 

Essa amálgama de linguagens, que faz as ideias se transformarem em um espetáculo, se conecta com a experiência do espectador. “Justamente essa experiência é que permanecerá na memória de cada um, quando tudo acabar, quando a cortina descer, esse conteúdo ficará na lembrança do público, o que transforma a apresentação em uma experiência única para cada indivíduo.”

Essa relação entre a arte e o design se mistura com a história Jum Nakao. Do seu ateliê criativo surgiram ideias para desenvolver as peças da performance A costura do invisível, em junho de 2004, na São Paulo Fashion Week. No término do desfile, os modelos rasgaram as roupas feitas de papel vegetal confeccionadas em mais de 700 horas de trabalho. No ano seguinte, em 2005, a convite do diretor Luiz Fernando Carvalho, Jum participou da microssérie Hoje é dia de Maria, da TV Globo, respondendo pela concepção e criação de uma corte real. 

Sinergia

A sinergia entre a moda e a dança ganhou destaque pelas mãos da estilista Raquel Davidowicz, que assina os looks da UMA. Em 2014, os bailarinos da São Paulo Companhia de Dança desfilaram na São Paulo Fashion Week pela grife. “Moda e dança andam juntas, ambos devem seguir uma coerência de estilo próprio e marcante para cada etapa, ou no caso da dança para cada espetáculo” explica Raquel. “Sempre a expressão corporal se utiliza da vestimenta para transmitir o que se deseja, a moda é exatamente isso.”

A ideia de criar um espetáculo ou uma performance durante a SPFW surgiu da amizade entre Raquel e Inês Bogéa, a diretora artística da SPCD. “Sempre que nos encontrávamos, tínhamos o sonho de realizar um espetáculo de dança surpreendente para exibir na São Paulo Fashion Week. Nos unimos para que a coleção fosse própria para dança, foram escolhidos bailarinos contemporâneos determinados pela Companhia, inclusive um bailarino, o Rafael Gomes, que estava iniciando um processo de coreografia se juntou a um amigo profissional de música – Hisato – e tudo resultou num trabalho maravilhoso”, lembra a estilista. 

Nas palavras de Raquel, o encontro entre a moda e a dança representou uma “completa sinergia entre as peças da coleção e o trabalho dos bailarinos”. O resultado foi a criação de peças atemporais, repletas de sobreposições, assimetrias, fendas e recortes, feitas em cores sóbrias como preto, cinza, off white e azul. A amizade entre as duas criadoras e a potente sinergia entre dança e moda também estão presentes no figurino da coreografia Entreato, de 2008.

Moda e dança

Outros nomes de destaque do mundo fashion assinaram figurinos para a dança como Ronaldo Fraga e Freusa Zechmeister. Fraga assinou as peças de Passanoite para a São Paulo Companhia de Dança – a coreografia e as roupas abordam os corpos e se inscrevem no espaço como palavras de um poema, que fala de questões que estão no tempo e fora dele. Já para o Grupo Corpo, Freusa assina o figurino de Dança sinfônica, que celebra as quatro décadas do Grupo Corpo.

Entre tantos nomes e obras, fica o registro da simbiose que existe entre dança e moda. A moda, por definição, vai muito além da maneira de vestir, mas é a expressão de um modo de viver, de costumes e vontades. A dança une a expressividade do corpo em movimento com pensamentos. O gesto é a tradução poética de ideias. 

Moda e dança em um espetáculo traduzem os pensamentos e, como bem disse Jum Nakao, criam pontes para que o espectador possa criar suas próprias impressões e memórias de um espetáculo.

‘Entreato’, de 2008 (divulgação, João Caldas)
‘Entreato’, de 2008 (divulgação, João Caldas)

 

São Paulo Companhia de Dança na Fashion Week (divulgação)
São Paulo Companhia de Dança na Fashion Week (divulgação)

 

‘Dança sinfônica’, do Grupo Corpo (divulgação, José Luiz Pederneiras)
‘Dança sinfônica’, do Grupo Corpo (divulgação, José Luiz Pederneiras)

 

‘Passanoite’, da São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Reginaldo Azevedo)
‘Passanoite’, da São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Reginaldo Azevedo)

 

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