Vestir a dança

Figurinos acompanham a história da dança e buscam diálogo com direção e coreografia

Com quase 200 anos, poucas peças são associadas imediatamente a uma profissão ou arte como o tutu. De fantasia ao imaginário infantil, se alguém falar em bailarina, o figurino e as sapatilhas são imediatamente reconhecidos. Apesar de tamanho alcance e, sim, sucesso para fins diversos, em cena, um tutu traz a tradição, o cuidado e certa aura de alta costura – há documentários, por exemplo, que abordam os bastidores da Ópera de Paris, com funcionários dedicados (e devotados) a bordar e criar meticulosamente um figurino.  

Foi justamente no teatro francês, em 1832, que Marie Taglioni subiu aos palcos com a primeira versão romântica desse traje, criado por Eugène Lami para La Sylphide, com saias esvoaçantes longas, caracterizando a personagem etérea e intocável do movimento artístico da época. Desde então, essa peça ajuda a contar a história de muitos balés e, além de diferentes, não é exagero dizer: um tutu é sim uma peça única, feita sob medida e precisa de um olhar especialista para dar vida à personagem. 

Um tutu é sim uma peça única, feita sob medida e precisa de um olhar especialista para dar vida à personagem

No Brasil, Tânia Agra é uma espécie de dama da alta costura dos modelos para as principais produções nacionais – ela costuma trabalhar para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e para a São Paulo Companhia de Dança, por exemplo. “Existe uma técnica especial de confecção do tutu e obedece a uma série de requisitos na indicação do personagem. Exige-se que seja sob medida e feito com determinados materiais específicos, que resultem em leveza e requinte”, diz ela em entrevista para a Revista CONCERTO. 

No seu ateliê passam pedidos de livre criação e também os chamados balés de repertório representados há pelo menos um século – não é força de expressão. Lago dos cisnes (1895), Gisèlle (1841), Bela adormecida (1890), entre muitos outros. “Para esses, é primordial que o figurinista tenha um grande conhecimento de história da dança, porque os trajes foram especialmente criados para essas obras famosas e devem observar a época e o estilo de cada uma”, observa. 

Os trajes não estão isolados da criação e, ainda nas palavras de Tânia Agra, devem funcionar como “uma segunda pele”, sem impedir, obviamente, a execução dos movimentos. 

Outra dama, dessa vez da moda, Coco Chanel (1883-1971), em 1928, assinou o figurino de Apollon Musagète, coreografia de George Balanchine (1904-1983), com música de Igor Stravinsky (1882-1971) para os Ballets Russes de Diaghilev – dizem que o compositor e a estilista formavam um belo casal. A estilista trouxe uma ousadia para a época, com bailarinas vestidas sem qualquer adereço extravagante, um body e uma saia curta sem volume, tudo branco. As peças deixavam pernas e corpo livres para mostrar as linhas retas, a força e a transformação apresentada na dança clássica por Balanchine. O trabalho, rebatizado na década de 1950 de Apollo, ainda hoje é sucesso no repertório do New York City Ballet – companhia que o coreógrafo ajudou a criar e moldar, dando força à dança nos Estados Unidos – e mantém o mesmo traje nos palcos.

Apollo também marcou a primeira parceria entre Stravinsky e Balanchine. Para o compositor, a musicalidade de Balanchine servia para potencializar sua criação

Apollo também marcou a primeira parceria entre Stravinsky e Balanchine. Para o compositor, a musicalidade de Balanchine servia para potencializar sua criação. E o figurino, nesse caso, servia para projetar o modo de pensar a dança. O exemplo serve para mostrar a conversa importante entre coreografia e seus elementos. Parece simples, mas a intimidade entre todos é fruto de muito entendimento.

Durante 22 anos, Janaína Castro foi bailarina do Grupo Corpo, carreira encerrada ano passado. Desde a década de 1970 a companhia mineira estabeleceu um modo de trabalhar em união de seus elementos de cena – coreografia, figurino, cenário, trilha sonora e luzes criavam a unidade dos espetáculos ao longo dos anos. Conquistaram o Brasil com um modo de fazer dança e, internacionalmente, apresentaram um País com enorme sofisticação de seus criadores. Este ano, o Grupo foi convidado para dançar uma obra de Alberto Ginastera em Los Angeles, em uma única apresentação, no Hollywood Bowl, ao lado da Orquestra Filarmônica de Los Angeles, convite feito pelo maestro Gustavo Dudamel. 

Estância, coreografia criada por Rodrigo Pederneiras, trouxe pela primeira vez figurino de Janaína. “Comecei minha pesquisa estudando sobre a história do compositor argentino Ginastera e da música Estância. Resumidamente a história é sobre um rapaz da cidade que se muda para uma estância nos pampas argentinos e ali se apaixona por uma jovem do campo. Para conquistar seu amor, deve ser capaz de se provar um verdadeiro ‘gaúcho’”, conta Janaína.

Para a criação, partiu dos trajes tradicionais, o Chiripá e o Poncho, e aos poucos, como conta, foi evoluindo para um visual mais moderno, com saias esvoaçantes. “Ter feito parte da companhia por tanto tempo e conhecer o movimento do Rodrigo, a estrutura do palco, diferente do habitual, onde o balé e a orquestra dividiam o mesmo espaço. Tudo foi levado em consideração no figurino”, revela.

Fábio Namatame, outro nome reconhecido nos palcos, circula como poucos entre dança, musicais e teatro

Fábio Namatame, outro nome reconhecido nos palcos, circula como poucos entre dança, musicais e teatro. Há poucos anos, uma matéria chamava atenção de que tinha virado uma “grife das coxias”. Seu olhar atencioso também trabalha para uma conversa com todos os envolvidos na cena. Para ele, o conforto para o bailarino é o ponto de partida da criação, conquistado na modelagem ou nos tecidos com elasticidade. “O trabalho é imediatamente ligado ao coreógrafo, à dramaturgia que está criando. Costumo trabalhar junto experimentando materiais e modelagens para chegar ao figurino final”, revela.

É dele o figurino para a peça The Eighth, do americano Stephen Shropshire, para São Paulo Companhia de Dança, com pré-estreia agora em setembro no Brasil e estreia na Áustria em 2024. Ele também executa o figurino de Petroushka, de Goyo Montero, para a mesma companhia.

The Eighth, criada a partir da Oitava sinfonia, de Anton Bruckner (1824-1896), coloca em cena sua pesquisa de investigação constante da técnica do balé clássico. Não foi diferente com o figurino, um olhar para mostrar as linhas e os desdobramentos de seu pensamento, quebrando os padrões da base clássica da dança, mas ainda assim em diálogo com a tradição. Usando paetês pretos, Namatame também está de olho na história do figurino, um misto de elegância, ousadia e peso – deixa assim que os movimentos sejam “vestidos” com o estilo de seu coreógrafo e de seu tempo. 

Agenda
The Eighth, Stephen Shropshire, pré-estreia com a São Paulo Companhia de Dança. Dias 15 e 16 de setembro, no Sesc Guarulhos, em Guarulhos (SP).
Petroushka, de Goyo Montero, estreia com a São Paulo Companhia de Dança. De 6 a 8 de outubro no Sesc Pinheiros, em São Paulo (SP).

Para assistir
Clique aqui para ver trecho de Estância, com o Grupo Corpo e a Orquestra Sinfônica de Los Angeles.
Clique aqui para ver trecho de Apollo, com o New York City Ballet.
Clique aqui para ver trecho de La Sylphide, com a São Paulo Companhia de Dança, na versão de Mario Galizzi.

‘A bela adormecida‘ produção de 2023 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Carol Lancelloti)
‘Bela adormecida’, produção de 2023 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Carol Lancelloti)
‘Giselle‘ produção de 2023 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Carol Lancelloti)
‘Giselle’, produção de 2023 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Carol Lancelloti)

 

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