O testamento sinfônico de Santoro

por João Marcos Coelho 01/12/2025

Últimas sinfonias do compositor ganham vibrantes execuções da Orquestra Filarmônica de Goiás em disco da série Música do Brasil, da Naxos

Com o lançamento do CD com as duas últimas sinfonias de Cláudio Santoro, Neil Thomson e a Filarmônica de Goiás atingem a metade da projetada integral: sete das 14 sinfonias já receberam interpretações de qualidade “do maior e mais significativo conjunto de obras no gênero compostas no Brasil”, na expressão de Gustavo de Sá, idealizador de um projeto inédito no país, o Música do Brasil. Em menos de uma década, e em meio a turbulências políticas que afetaram negativamente a vida cultural do país, ele tornou realidade a maior das revoluções quando se fala de música de concerto: gravar em condições ótimas e com orquestras e maestros de qualidade a música sinfônica brasileira.

As duas sinfonias, compostas em 1988 (a décima terceira) e 1989 (a décima quarta), alternam-se com outras duas obras que Santoro compôs enquanto não trabalhava nelas: o Concerto para viola e orquestra e o Concerto para orquestra de câmara, ambas de 1988. 

Diplomático, Gustavo de Sá atribui à posse da nova direção da Fundação Cultural de Brasília, à qual era subordinada a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília, a origem de “polêmicas” com Santoro, então maestro da orquestra. Não cita Marlos Nobre, o compositor então recém-empossado na direção da Fundação Cultural. “A crise atingiu todo o meio cultural da cidade, mas o Teatro Nacional, sua orquestra e Santoro, em particular, estavam entre os principais centros do conflito ao longo do ano.”

Foram quinze meses de atritos constantes. Mesmo assim, Santoro encontrou tempo para compor duas sinfonias e dois concertos. Ao morrer no pódio ensaiando a Orquestra Sinfônica Nacional na manhã de 27 de março de 1989, ele já tinha engatilhada a décima-quinta sinfonia.

Em meados do maio anterior, concluiu o Concerto para viola, que só foi estreado em 20 de abril do ano seguinte, pouco menos de um mês depois de sua morte. Excelente a performance do experiente Gabriel Marin, lírico no belo canto da sua viola, secundada por harpa, celesta e cordas no Andante central, e incisivo no Allegro moderato deciso final.

Encomenda do pianista Miguel Proença, o Concerto para orquestra de câmara foi composto em julho, dois meses depois do concerto de viola. Santoro compunha freneticamente naquele ano. Entre as duas, também compôs uma suíte para cello solo e um ciclo de canções, O soldado, sobre textos de Alexis Zakythinos.

A nº 13 uma espécie de clímax de seu portentoso ciclo de sinfonias. Como é possível que ela só tenha estreado 37 anos depois, em 16 de julho deste ano, em Goiânia, por Thomson e a Filarmônica de Goiás?

A Sinfonia nº 13 com certeza é a obra mais impactante deste álbum. Gestada desde 1987, só a colocou no pentagrama em agosto de 1988. Cito as datas pra se ter uma ideia da intensidade criativa que ele experimentou naquele ano. Estruturada em quatro movimentos, é possivelmente a mais impactante de todo o ciclo. Gustavo de Sá usa a expressão “discurso furioso, numa atmosfera violenta que não encontra paralelo no restante do ciclo” para qualificar o movimento inicial, um vibrante Allegro. De fato, é uma espécie de clímax de seu portentoso ciclo de sinfonias. E recebe uma leitura arrebatada e precisa. Sobretudo no Allegro inicial, graças também à regência segura de Thomson. Como é possível que ela só tenha estreado 37 anos depois, em 16 de julho deste ano, em Goiânia, por Thomson e a Filarmônica de Goiás?

Santoro também não presenciou a primeira execução pública de sua Sinfonia nº 14, encomendada em 1988 pela Funarte para comemorar seus 70 anos na oitava Bienal de Música Brasileira Contemporânea, no Rio de Janeiro, no ano seguinte. Composta em duas semanas em janeiro de 1989 na Casa de Brahms, em Hamburgo, onde ele passou uma curta temporada. O manuscrito, informa Gustavo de Sá, indica na primeira página “começada na Brahms-Haus, janeiro de 1989” e, na última página, está a data de 19 de janeiro para a conclusão. Ela é mais curta por um motivo prosaico: acabou seu papel pautado e ele não encontrou mais para comprar. Também na última página manuscrita, dedicou-a à esposa Gisèle. E escreveu: “Espero que você goste desta 14ª. Já é demais... Não devo escrever mais sinfonias”. A sinfonia tem três movimentos, termina com um Moderato con anima impositivo, iniciando-se com as cordas em uníssono, vigorosas, sob o colchão dos metais igualmente vigorosos. 

É incrível que, apesar do ambiente estressado no qual viveu em Brasília durante todo o ano de 1988 e no início de 1989, ele não só manteve seu intenso ritmo criativo como transformou-o num ano absolutamente memorável, pelo volume e qualidade de suas composições de grande porte. 

Desde já, um dos álbuns mais impactantes do ciclo e ótima porta de entrada para quem não conhece a música sinfônica e concertante de Santoro.

[O disco com as obras de Santoro, assim como os demais volumes da coleção Música do Brasil, estão disponíveis na Loja Clássicos; clique aqui.]


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O compositor Claudio Santoro [Reprodução]
O compositor Claudio Santoro [Reprodução]

 

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