Acervo CONCERTO: Uma entrevista com Arthur Moreira Lima

por Redação CONCERTO 30/10/2024

Em dezembro de 1997, a Revista CONCERTO publicou uma entrevista com o pianista Arthur Moreira Lima, na qual ele comentava seu trabalho mais recente, um disco dedicado à obra de Astor Piazzolla. Leia abaixo a íntegra da conversa do pianista com o jornalista Luis S. Krausz.

Arthur Moreira Lima

Em entrevista exclusiva à revista CONCERTO o grande pianista brasileiro Arthur Moreira Lima discute seu mais recente trabalho, um CD com música de Astor Piazzolla transcrita para piano por Laércio de Freitas 

Arthur Moreira Lima nasceu no Rio de Janeiro, formou-se no Conservatório Tchaikovsky de Moscou e teve seu nome projetado internacionalmente quando participou do Concurso Chopin de Varsóvia. Suas leituras do grande compositor polonês foram comparadas pela crítica às de Horowitz e Rubinstein. Sua grande afinidade com o piano romântico combina-se com uma especial atenção ao repertório brasileiro. Compositores como Villa-Lobos, Brazílio ltiberê e Ernesto Nazareth estão entre os seus favoritos e o pianista dedica especial atenção à divulgação da música erudita, especialmente em concertos populares, ao ar livre.

Por Luis S. Krausz

CONCERTO - Recentemente parece haver, no cenário internacional, uma redescoberta de Astor Piazzolla por músicos eruditos. Daniel Barenboim e Gidon Kremer gravaram obras deste mestre recentemente. A que você atribui esta apropriação de Piazzolla, que em vida foi considerado um compositor popular, pelos intérpretes eruditos?
Arthur Moreira Lima - Em primeiro lugar, acho que ele sempre foi um compositor de fundo clássico. Piazzolla estudou música a sério, queria ser clássico, e inaugurou uma nova maneira de se abordar a música popular ele Buenos Aires. “Lá embaixo está o tango, aqui em cima está a música”, dizia ele, referindo-se a seu trabalho. Hoje a Europa está percebendo uma coisa que eu percebi há 30 anos: Piazzolla foi um compositor erudito. Kremer e Barenboim são duas visões diferentes sobre Piazzolla. Kremer deu um tratamento totalmente erudito à música de Piazzolla. Ele tem uma pesquisa muito consistente em torno deste compositor, que o levou a criar arranjos muito interessantes, embora o estilo de Kremer seja diferente cio estilo de Piazzolla. É mais cerebral, por não estar habituado ao estilo da coisa, por não ter a vivência ela música de Buenos Aires. Barenboim tem uma visão diferente. Gravou um disco de tango, que traz também algumas peças ele Piazzolla.

CONCERTO - Piazzolla foi, assim como Stravinsky, aluno da célebre Nadia Boulanger, em Paris. De que forma isto influenciou seu trabalho?
AML - Antes de Nadia Boulanger, Piazzolla estudou também com Ginastera. Ele já compunha música clássica aos dezoito anos de idade. Sempre teve formação clássica. Há de se convir que a formação musical dele, um argentino, é diferente da de um brasileiro. Na Argentina a música erudita é muito mais arraigada e integrada na sociedade, pois a população local tem um contingente europeu muito grande, de pessoas que trouxeram consigo esta música. Piazzolla trouxe ao tango, à milonga e a outros gêneros populares, um desenvolvimento cio ponto de vista formal, musical. É um tratamento que tem como característica o aproveitamento dos temas, com contrapontos, fugas, imitação, cânon, todos os elementos formais da música erudita. Piazzolla recolheu seus temas da música de rua, mas desenvolveu-os à maneira da sonata e a singularidade de sua música está neste tratamento. Quando eu ouvi Piazzolla pela primeira vez, percebi tudo isto. Só que o mundo é muito preconceituoso. Ninguém discute se Bartók e Villa-Lobos foram gigolôs do exótico. Mas Piazzolla, em vida, foi atacado, ao mesmo tempo, por populares e clássicos, porque estava experimentando um novo caminho - à maneira do que aconteceu com Radamés Gnatalli.

CONCERTO - Quais são as principais influências eruditas na música de Piazzolla? 
AML - Bartók, Stravinsky, Debussy, Ravel, os impressionistas. Mas também há uma influência notável de Bach, que estudou como ninguém a fuga e o contraponto. Nadia Boulanger foi a grande incentivadora para que ele criasse uma música erudita pautada na música de seu povo. 

CONCERTO - O que diferencia a interpretação de Piazzolla da de outros compositores eruditos?
AML - Piazzolla deixa, em suas partituras, bastante espaço para a improvisação, o que permite uma grande diversidade na interpretação. Quando eu digo que ele dá espaço para interpretações diferentes, não estou me referindo só à dinâmica e à agógica daquilo que está escrito, mas sobretudo a uma certa liberdade para o intérprete de ir utilizando aquele arcabouço de forma livre. Neste sentido, sua música tem um parentesco com a música barroca. A música só foi começando a ficar muito amarrada a partir do classicismo. Beethoven já escrevia, em suas partituras, as improvisações, mas acho que os músicos barrocos normais, que trabalhavam e comiam na cozinha, eram mais completos do que os grandes virtuoses do século XIX. Menos brilhantes, eram capazes de preencher os vazios da partitura à primeira vista e de tocar e improvisar de maneira coerente com a partitura escrita. Esta característica - que é fundamental quando se fala da obra de Piazzolla - foi perdida pelo romantismo, pela cultura do mega artista virtuose. A música de Piazzolla é uma música mais flexível, e sua interpretação será tanto melhor quanto mais o intérprete obedecer o estilo original do compositor. Música, quando é boa, não necessita que o autor a amarre inteiramente. O ponto culminante da música barroca é, a meu ver, a Arte da Fuga, de Bach. Acontece que A Arte da Fuga não foi passada por Bach a instrumento nenhum. Ele deixou a instrumentação ad libitum. É possível maior liberdade de execução.

CONCERTO - Você chegou a conhecer Piazzolla? Chegaram a trabalhar juntos?
AML - Conheci-o em 1978 e ele tornou-se um grande amigo. Uma das músicas do disco, o Tango prelúdio, foi dedicada a mim. Ele foi uma figura fascinante, inteligente, culto, informado, profundo conhecedor de música, extremamente dedicado à sua arte. Estávamos sempre em contato, a e morte dele me pegou totalmente desprevenido. Ouvi-lo ao vivo era uma experiência por vezes estafante. Cada pedacinho de sua música era carregado de emoção. Ele chegava a perder de 3 a 4 quilos por concerto.

CONCERTO - Quais são as dificuldades de se transpor para o piano uma música composta para o bandonéon?
AML - Nem todas partituras se prestam a boas transcrições e, no caso do piano, a dificuldade maior é colocar uma porção de instrumentos e vozes num só instrumento. No que diz respeito à altura sonora não há dificuldades, mas quando se fala em timbre é diferente. A parte do bandonéon por vezes tem que ser modificada, é preciso muitas vezes tocar em quartas para poder imitar algum tipo de ataque do bandonéon. Quanto aos contrapontos, é muito difícil tecnicamente, tanto para tocar quanto para escrever. Laércio de Freitas, autor das transcrições que estão em meu disco, fez um trabalho fantástico. Ele fez o trabalho básico ouvindo - e não lendo - as partituras e o resultado ficou muito bom, muito bonito. Mas é muito difícil de tocar e de interpretar, mantendo os acentos da milonga e do tango. Dá para fazer um novo CD com as transcrições que sobraram, e vamos fazê-lo num futuro próximo.

CONCERTO - Qual tem sido o impacto deste seu novo trabalho?
AML - Por ser um trabalho feito inteiramente por brasileiros, acho que reflete uma aproximação muito importante que estamos tendo com os países latino-americanos. Como brasileiro e fã da Argentina, fiquei contente de ver este trabalho apreciado na Argentina. Haverá, em breve, um lançamento do CD no Teatro Colón. Mas o que me deixou mais contente de tudo foi o fato de que a Edition Peters, de Frankfurt, Londres e Nova York, quer comprar estas partituras e editá-las. Acho que isto será um passo importante para colocar a música de Piazzolla nas salas de concerto do mundo inteiro. Num programa de recital de piano, a música de Piazzolla fica maravilhosa ao lado da de Albeniz, Debussy, Prokofiev. Se conseguir com isto elevá-lo, colocá-lo ao alcance dos pianistas, colocá-lo no repertório frequentado, esta terá sido a minha maior conquista, e o que mais contente me deixará com este trabalho.
CONCERTO - Obrigado pela entrevista.

Entrevista Arthur Moreira Lima

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