Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de março de 2000
“Von Herzen, möge es wieder zu Herzen gehen” – esta é a dedicatória de uma das obras mais colossais da maturidade de Beethoven: “Que do coração possa voltar para o coração”. A Missa Solemnis, que foi iniciada em 1818, para a sagração de seu protetor, o arquiduque Rodolfo, como cardeal de Olmütz, em 9 de março de 1820 – mas não ficou pronta a tempo para execução – é um dos grandes marcos do fim da vida de Beethoven. Assim como os últimos quartetos, as últimas sonatas ou a Nona Sinfonia, ela sintetiza toda uma tradição e, ao mesmo tempo, sinaliza caminhos novos. Ou seja — como o demonstrou H.C. Robbins Landon numa análise detalhada da obra —, utiliza o passado como um trampolim para projetar-se no futuro, mediante uma linguagem inconfundivelmente pessoal, que funde e se apropria dos mais diversos recursos de escrita que lhe são legados pelas missas de Mozart e de Haydn.
Embora destinada ao ofício sagrado, as proporções gigantescas da Solemnis, o efetivo vocal-instrumental que usa, e seu caráter mais teatral do que litúrgico a transformaram numa peça mais apropriada para a plataforma de concertos do que para a igreja. O príncipe Nikolái Galitsin – que encomendara a Beethoven seus últimos quartetos – promoveu a primeira execução em São Petersburgo, em 26 de março de 1824 (7 de abril, pelo calendário gregoriano).
Viena a ouviu parcialmente, em 7 de maio de 1824, no concerto de estreia da Nona Sinfonia. Segundo André Boucourechliev, a Solemnis “assinala, na aurora do Romantismo, o divórcio entre as artes e o sagrado, antes reunidos, durante muitos séculos de obras-primas. A missa celebra o homem em suas glórias e vicissitudes; está habitada pela alegria e a tristeza humanas, os cânticos da natureza, os ecos da guerra e os atrativos da paz – e, antes de mais nada, pela vontade de triunfar”, típica de um homem que precisou superar traumas aparentemente intransponíveis, tendo em cima dessa sublimação erigido uma das obras mais espantosas da História da Arte.
Muito sóbria no “Kyrie”, fiel à tradição do decoro do homem, que se sente ínfimo diante de Deus; grandiosa nos imensos blocos que se juntam para formar o “Gloria”; intensamente patética e teatral no “Credo”, mas muito recolhida no “Sanctus” e lírica no maravilhoso solo de violino do “Benedictus”, a Solemnis culmina na explosão violenta do “Agnus Dei”, que Boucourechliev chama de “um verdadeiro poema sinfônico sobre o tema da angústia, da súplica, da busca da paz”. A Bitte um inneren und äusseren Frieden (o pedido pela paz interior e exterior) de que falava Beethoven nos escritos da época da composição da Missa, leva a obra, no “Dona nobis pacem”, a uma solução apoteótica, mas de absoluta serenidade.