Acervo CONCERTO: ‘Sinfonia nº 9’, de Gustav Mahler

por Redação CONCERTO 14/10/2022

Texto de João Luiz Sampaio publicado na edição de julho de 2014 da Revista CONCERTO

Na biografia de Gustav Mahler, o ano de 1907 ganhou importância fundamental. Foi quando ele deixou o cargo de diretor da Ópera de Viena, sob campanha virulenta da imprensa, e, paralelamente à crise em sua vida profissional, enfrentou dificuldades no campo pessoal: em julho, o compositor testemunhou a morte da filha Maria, vítima de difteria; e, pouco tempo depois, descobriu que sofria de um problema congênito no coração. O próprio Mahler, em carta escrita em 1908 ao amigo e maestro Bruno Walter, daria a medida do impacto provocado por esses acontecimentos: “Direi a você apenas que perdi toda a claridade e quietude que um dia conquistei, que estive diante do nada e que, agora, no final da vida, sou novamente um iniciante que precisa encontrar equilíbrio”. 

Esses dados biográficos tornaram-se indispensáveis à compreensão da Nona sinfonia do compositor, escrita dois anos mais tarde. E a peça passou a ser, por conta disso, entendida como uma espécie de carta-testamento, um relato tenso e comovente do flerte com a morte – e da aceitação da finitude como um fato incontornável da vida. “A sinfonia é uma canção que nos fala do pós-morte. Mahler morreu por causa dela. Sua busca instintiva pela verdade chegara enfim ao clímax”, escreveu, no início dos anos 1920, o crítico Paul Bekker, estabelecendo uma interpretação que seria corroborada por nomes como o próprio Walter, para quem a “força motriz da música” seria a “sensação da partida”, da despedida. 

Não parece haver dúvidas de que o Mahler que, no verão de 1909, começou a trabalhar na Sinfonia nº 9 era um homem transformado pelos acontecimentos dos anos anteriores. Ainda assim, seus principais biógrafos são unânimes ao afirmar que a imagem do autor fechado em sua cabana à beira do lago em Toblach – pressentindo, a cada nota colocada na partitura, o fantasma da morte – é exagerada. E, como prova disso, eles usam palavras do próprio compositor. “A obra (o que sei dela, pois tenho escrito cegamente e, agora que comecei a orquestrar o último movimento, já esqueci do primeiro) é uma adição satisfatória à minha pequena família”, escreveu ele a Walter sobre a sinfonia, de forma breve e sem fazer referência a algum programa extramusical para a criação. 

Dessa forma, se a Sinfonia nº 9 é um dos símbolos da tendência, sempre muito forte na fortuna crítica de Mahler, de associar vida e obra, também é prova de que essa ligação se dá por mecanismos muito mais complexos do que normalmente se supõe. Uma prova disso foi fornecida pelo compositor Alban Berg, quando escreveu, em uma carta a sua mulher, sobre o impacto provocado pela audição da Nona. A presença do fim, ele reconhece, é muito forte. O que lhe parece mais importante, no entanto, é a “expressão de um amor inédito por esta terra, de um desejo de viver nela em paz... até que a morte se aproxime”. 

Em outras palavras, em uma obra como a de Mahler, construída sobre a dualidade, fazendo conviver a nostalgia e a ironia, o sentimental e o moderno, nada pode ser tão óbvio. No caso específico da Nona sinfonia, talvez seja mais interessante compreender morte e vida como alegorias de uma sensação de não pertencimento a um mundo do qual, paradoxalmente, não é possível se distanciar. E, em música, isso talvez se traduza pela opção de levar ao extremo elementos do Romantismo, “abalados pelo trauma de nascimento da modernidade e recuperados sob uma nova perspectiva, que oscila entre a ironia e a violência”, nas palavras do filósofo Jorge de Almeida.

A Nona sinfonia, então, nos falaria não necessariamente de morte – seja do indivíduo, seja de toda uma época –, mas de transformação, de transmutação. É o que sugere o maestro e compositor Pierre Boulez no prefácio da edição espanhola do Gustav Mahler de Bruno Walter. “Unir a obra do compositor a uma corrente que conduz diretamente, e de forma plena, à Segunda Escola de Viena, seria forçar as coisas, fazer com que digam mais do que podem de fato dizer. Há, em Mahler, muita nostalgia, laços grandes demais com o passado, para que façamos dele um revolucionário responsável por desencadear um processo irreversível de renovação radical”, escreve. “Mas, há, por outro lado, uma vontade tão obstinada de passar por cima das categorias do passado, de forçá-las a expressar algo para que não estavam originalmente destinadas, há tal persistência no modo como ele estende os limites que não se pode reduzir Mahler a uma definição de ‘fim de tempo’; ele participa, de sua maneira pessoal, do futuro.”

Manuscrito da Sinfonia nº 9 de Gustav Mahler
Manuscrito da 'Sinfonia nº 9' de Gustav Mahler

 

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