Compositora finlandesa morreu na última sexta-feira, aos 70 anos
“A tarefa do artista de hoje é oferecer uma arte rica espiritualmente. Propor novas dimensões espirituais. Expressar-se com maior riqueza, o que nem sempre significa mais complexidade, mas, sempre, maior delicadeza.”
Assim a compositora finlandesa Kaija Saariaho definiu certa vez o seu trabalho como criadora. Um trabalho central na música da segunda metade do século XX e do início do século XXI, celebrado pelo público e pela crítica.
Saariaho morreu na última sexta-feira, aos 70, anos, vítima de um câncer no cérebro. Segundo comunicado de sua família, ela vinha se tratando desde 2021 e optou por manter discrição sobre sua condição. Seguiu trabalhando até o fim – sua última obra é um concerto para trompete que será estreado em agosto pela Orquestra da Rádio Finlandesa, sob regência de Susanna Mälkki.
“Não há outra música como a dela no mundo”, afirmou ontem em entrevista à BBC o diretor Peter Sellars, que colaborou com a compositora em algumas de suas obras e assina atualmente uma produção da ópera Adriana Mater em São Francisco. “Ela não gostava de ser chamada de female composer, mas sua obra tem um significado tão profundo para tantas pessoas que não ouviam suas vozes na música clássica. É uma voz feminina que nunca havíamos ouvido antes. Kaija literalmente abriu a música clássica para a outra metade do mundo”, completou.
No New York Times, o crítico Zachary Woolfe escreveu que a música de Saariaho “estremece e brilha, mas nunca carece de força”. “Exuberantes e muitas vezes sinistras, veladas em um mistério sombrio, suas peças evoluem com sinuosidade muscular. Suas partituras podem evocar o brilho do sol – sua beleza, sua aspereza, seu calor quase cegante – mas também a agitação lentamente vertiginosa das profundezas do mar.”
Para ele, as preocupações de Saariaho eram claras quase desde o início de sua carreira: “guiar instrumentos eletrônicos e acústicos em novas alquimias de cor, luz e massa; a criação de uma quietude fervilhante; a rapidez com que a aparente solidez desmorona no nada.”
Trabalhando com diferentes gêneros e formas, Saariaho destacou-se em especial pelo trabalho realizado com a ópera. Seu título mais recente, Innocence, estreado em 2021, abordava um tema contemporâneo: um assassinato em massa em uma escola.
“O fascínio na ópera para mim é ver como os compositores escolhem quais momentos passam rapidamente e quais são as frases-chave que precisam de muito tempo. Ver isso acontecer com Kaija foi absolutamente extraordinário. E acho que há algo na franqueza do texto que a fez escrever sua música de maneira diferente – ela não apenas foi inspirada pelo texto, ela foi alimentada por isso. Ela criou um universo para cada um dos personagens e realmente se colocou na pele de cada um deles”, contou Mälkki, que assinou a direção musical da estreia da ópera, ao jornal The Guardian.
Saariaho nasceu em Helsinki em outubro de 1952. Estudou na Academia Sibelius e, mais tarde, participou dos cursos de verão de Darmstadt, antes de se instalar em Freiburg, onde continuou seus estudos. No início, sua obra foi marcada pela ênfase no serialismo. Em Darmstadt, o contato com Tristan Murail e Gérard Grisey a aproximou da música espectral, caminho que seguiu ao se mudar, no início dos anos 1980, para Paris, onde passou a trabalhar no Ircam. Lá fez os primeiros experimentos com a música eletrônica e com a música concreta.
Com o tempo, ela passou a se interessar, em suas palavras, por obras que permitissem a exploração de “massas sonoras”. Críticos costumam chamar atenção a seu trabalho com timbre e à sinestesia de suas obras. A própria Saariaho falava de uma música escrita para todos os sentidos. “Os mundos visual e sonoro são um só para mim. Diferentes sentidos, tons de cores, texturas ou luzes e mesmo fragrâncias se misturam em minha música. Eles formam um mundo em si próprio.”
Confira uma seleção de obras fundamentais para se conhecer a trajetória e o legado de Saariaho e as diferentes fases pelas quais passou ao longo da carreira.
Verblendungen
Escrita em 1984, a obra é símbolo do período em que Saariaho trabalhou com Tristan Murail e Gérard Grisey e uma de suas primeiras explorações da combinação entre instrumentos acústicos e eletrônica. Para Woolfe, em Verblendungen, “sons gravados e um conjunto ao vivo juntos fazem uma jornada de dissolução gradual que parte de uma densidade esmagadora e chega às mais efêmeras partículas”.
Concerto para violino
De 1994, o Concerto para violino, Graal Théatre, foi escrito para o violinista Gidon Kremer e inspirado pela leitura de um livro de mesmo nome de Jacques Roubaud. Nele, o autor reconta a lenda medieval de acordo com suas próprias visões de mundo. Segundo Saariaho, o livro a influenciou de duas maneiras. Primeiro, pelo título, uma vez que sempre chamou sua atenção o aspecto teatral do fazer musical; e, em segundo lugar, porque o procedimento do autor a fez acreditar na possibilidade de recriar de maneira original e pessoal uma forma ligada ao passado, a do concerto para violino.
L’amour de loin
Foi a primeira ópera de Saariaho, estreada em 2000 no Teatro Châtelet, em Paris. O libreto, do escritor libanês Aamin Maloouf, é inspirado no relato de um trovador do século XII, Jáufre Rudel. Cansado de um mundo marcado pela superficialidade, ele escreve sobre um amor distante, criando uma mulher idealizada que jamais conheceu. Sem preocupação narrativa, a ópera tem como foco as sensações e o mundo interior da personagem enquanto fantasia e reflete sobre o amor.
Mirages
A vida de Maria Sabina, xamã do povo Mazatec, do sul do México, é o ponto de partida da obra, de 2007. Sua prática era marcada pela presença de cantos, que serviram de inspiração para a partitura. A própria compositora definia Mirages como um passo adiante na sua reflexão sobre o papel da mulher na sociedade, que também se faria presente na ópera Adriana Mater (2005) e no oratório a Paixão de Simone (2007).
Circle Map
A obra sinfônica de 2012 foi escrita a partir do poeta persa do século XIII Rumi. A compositora conta que, fascinada pelos textos, realizou uma gravação dos poemas e, a partir daí, criou a obra em torno não apenas das imagens que evoca mas da própria sonoridade do idioma, que teve influência central na forma.
Innocence
O libreto se passa dez anos após um assassinato em massa em uma escola. O irmão mais novo do atirador está prestes a se casar e a família decide omitir a informação de seu passado. Mas uma das funcionárias do salão em que acontece a festa é mãe de uma das crianças mortas no episódio – e resolve encarar a família do noivo. “A história não tem como foco as motivações ou a psique do atirador, que não deve em hipótese alguma ser retratado no palco”, escreveu Saariaho na partitura. “O foco deve estar nas vítimas e em como a tragédia destruiu suas vidas; e em jogar luz sobre pessoas que foram decisivas para que a tragédia acontecesse – nenhuma delas é inocente.”
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