Música sem adjetivos

por João Marcos Coelho 15/09/2025

Em sua apresentação pela série da Tucca,  Pat Methey mostrou que é da estirpe dos grandes no universo da música de invenção. Jamais olhou ou olha para trás. Seu credo artístico desde o início está firmemente ancorado na forte crença de que os músicos de jazz devem refletir o tempo em que vivem

 

Assisti ao show solo do guitarrista Pat Metheny no último dia 1º de setembro no Teatro Cultura Artística, dentro da temporada internacional da TUCCA. Um assombro, sob todos os pontos de vista. Aos 71 anos, ele é senhor absoluto de sua arte. Acompanho seu itinerário artístico há décadas. Virei devoto mesmo quando ele gravou com o amigo e também músico extraordinário, o contrabaixista Charlie Haden. Ambos nasceram no Missouri. E ambos construíram música que sempre fala de narrativas. Instrumentais, claro, mas sempre interessadas em contar uma história. Sugiro a vocês que ouçam o antológico álbum de 1997 de Pat com Haden, intitulado Beyond the missouri sky

Alguns dias depois, o excelente pianista brasiliense Alexandre Dias – que deveria ser rapidamente canonizado por seu trabalho incansável e fundamental de resgatar documentos históricos de performances de pianistas brasileiros no IPB - Instituto Piano Brasileiro – postou no Facebook comentário certeiro sobre um artigo publicado na The Atlantic. Esta é a revista norte-americana cujo editor foi avisado no mesmo momento em que o presidente e o Pentágono eram informados do ataque aéreo dos EUA às instalações nucleares do Irã – um aviso que deveria ser top secret, mas viralizou num episódio tipo três-patetas...

Pois dizia eu que esta revista publicou um artigo de Matthew Aucoin com o seguinte título: “Você sabe de fato o que é música clássica? Alguém sabe?”. Irritado, Alexandre postou: “Acompanhando essa discussão que vez por outra ressurge: o que seria ‘música clássica’. Aqui nesse texto, eles defendem como sinônimo de ‘música escrita’, o que eu acho engraçado, pois é uma definição referente ao suporte, e não ao conteúdo em si. Dessa maneira, Zequinha de Abreu, Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga são música clássica. Como é bom ter abolido essa dicotomia no meu trabalho (música clássica vs. popular). Zero estresse com isso, elimina-se a conotação de superioridade de uma sobre a outra, e me abre demais as possibilidades de enxergar a música brasileira de maneira mais ampla”.

Você está coberto de razão, Alexandre. Se critério tem de haver, será sempre o da qualidade de invenção – bem longe da chamada música comercial, aquela feita pra durar 15 minutos. O mesmo critério aplica-se à visão inclusiva que Pat Metheny vem praticando em toda a carreira em relação à música. 

Pat não tem receio de dizer que abomina os que improvisam sobre um ou dois acordes, que este tipo de música não o interessa. É preciso que cada instante de música seja o desbravar de itinerários nunca antes navegados – só assim estabelece-se a rara comunhão entre palco e plateia. E também pode ser chamado de inventor: ele concebeu e a lutier Linda Manzer montou “Pikasso”, uma superguitarra de 42 cordas e três braços (que tocou no Cultura Artística).

Pois acreditem que isso aconteceu em mais de duas horas deste “recital” solo. Eu falei solo? Pois em muitos momentos ele se multiplicou milagrosamente em dois, três, cinco músicos, como na performance final. Ele é da estirpe dos grandes no universo da música de invenção. Jamais olhou ou olha para trás. Seu credo artístico desde o início estava firmemente ancorado na forte crença de que os músicos de jazz devem refletir em seu trabalho os tempos específicos em que vivem, e não permanecerem enraizados no conforto, no refúgio remoto de estilos passados. 

Expôs essa visão de forma persuasiva em seu discurso de 2001 na Associação Internacional de Educadores de Jazz: “É da própria natureza do jazz mudar, desenvolver e adaptar-se às circunstâncias de seu ambiente. A evidência disso está na incrível diversidade de músicas e músicos que evoluíram, viveram e floresceram sob o amplo guarda-chuva da própria palavra ‘jazz’ desde o início. Há um elemento importante e consistente na tradição do jazz de jovens vindo e moldando – reinventando – a natureza da própria forma para se adequar ao seu tempo e às suas circunstâncias, como só eles poderiam saber fazer… Eu sempre encorajo os músicos (que são, obviamente, cidadãos do mundo em primeiro lugar, e músicos de jazz em segundo lugar) a abordar todas as músicas que eles amam e que os atraem como pessoas, independentemente de seu estilo, independentemente de seu conteúdo, como um conjunto unificado de materiais quando consideram todas as suas opções – e potenciais – como músicos de jazz modernos".

Como parte de sua busca por "um certo tipo de drama na música", a eletrônica tornou-se cada vez mais importante durante seus anos de ECM, na década de 80, como meio de expandir o potencial timbrístico, primeiro com o sintetizador polifônico Oberheim e mais tarde com os muito mais capazes Synclavier e Roland Sintetizador de guitarra GR-300. Hoje, a parafernália tecnológica super up to date lhe franqueia o exercício de uma liberdade sem limites.

Metheny já declarou em entrevista que seu trabalho em grupo sempre se preocupou com um “sentido mais amplo de orquestração em um ambiente de grupo pequeno... O grupo nunca teve mais de sete pessoas e, ao mesmo tempo, estamos realmente escrevendo em uma escala orquestral”.
Para vocês terem uma ideia de sua amplitude e diversificação estética, recorro a um álbum de 2021, Road to the sun, todo com composições próprias, como a faixa-título, eventualmente toda escrita para quarteto de  violões. 

Pat Metheny [Divulgação]
Pat Metheny [Divulgação]

 

Numa entrevista recente, Metheny disse que “é sempre difícil para mim me relacionar com questões envolvendo gênero. A música é singular, existe num reino sem fronteiras”. E confessou ter sentido um prazer especialíssimo em compor para músicos como os quatro consagrados violonistas do Los Angeles Guitar Quartet (LAGQ) e Jason Vieaux. “Sua tradição muito particular exige que todos os aspectos da música sejam detalhados em notação. Por meio das notas escritas no pentagrama, eles podem encontrar seu lugar na música.” 

Bingo. Uma explicação simples e objetiva da razão pela qual ele, nestes casos, anotou tudo minuciosamente – como faz costumeiramente um compositor “clássico”. Tem um efeito colateral interessante, neste caso. Estas duas suítes com certeza invadirão rapidamente o mundo do violão clássico. Escrevo e me vem à cabeça outro exemplo: no incrível álbum de André Mehmari com Antonio Meneses, o primeiro anotou a parte do cello mas deixou em branco a sua, numa suíte que compôs especialmente para o CD 60\40.

Metheny, de seu lado, construiu duas suítes que já se pode considerar como obras importantes da música contemporânea para cordas dedilhadas. 
Four Paths tem quatro movimentos e 20 minutos de duração. É uma suíte para violão, interpretada por Jason Vieaux, 47 anos. É construída com motivos e harmonias do primeiro movimento, modificados em estilos bem diferentes nos demais movimentos. Este detalhe leva cabecinhas eruditas a pensarem que Metheny adota aqui a técnica da forma cíclica formulada por César Franck...

Road to the Sun respira outros ares, mistura folk, country, jazz e música experimental. Foi escrita para o Los Angeles Quartet. Com quarenta anos de existência, o LAGQ já gravou com a cantora Luciana Souza (Telarc, 2007) e fez a primeira gravação de Interchange, peça que Sérgio Assad compôs especialmente para o quarteto (Telarc, 2010). 

Com 30 minutos de duração, tem seis movimentos, como os da suíte para violão. A coesão entre eles é menor do que na suíte solo. Aqui fala mais alto o pluralismo estilístico. O terceiro movimento, por exemplo, é um blues lento, o quarto é construído sobre um groove, ou ostinato, se preferirem, que começa plácido, em contraponto, para de repente instaurar técnicas estendidas  no último minuto. Uma colher de chá pra vanguarda, com direito a harmônicos naturais e glissandi rascantes que desembocam attaca no quinto movimento, tranquilo e bem comportado, com a participação luxuosa do próprio Metheny ao lado do quarteto. Vale a pena ouvi-la. Como qualificá-la?, perguntaria o autor do artigo da revista Atlantic devidamente sinucado por Alexandre Dias. 

Elementar. Apenas como música de invenção.

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