Festival de Ópera de Óbidos, em Portugal, traz double bill no primeiro fim de semana com direção de André Heller-Lopes
Salões, pátios e jardins do belo convento de São Miguel de Gaeiras – erguido no século XVII e que até 1834 abrigava religiosos franciscanos –, na freguesia de Óbidos, em Portugal, receberam no fim de semana – dias 13 e 14 de setembro – o primeiro dos dois double bills da programação do Festival de Ópera de Óbidos, na edição comandada pela soprano portuguesa Carla Caramujo, uma das mais celebradas cantoras portugueses, com presença constante no Brasil. Os títulos foram A menina, o caçador e o lobo, de Vasco Mendonça sobre texto de Gonçalo M. Tavares, e L’enfant et les sortilèges, de Ravel, sobre poema de Colette – produções voltadas para o público infanto-juvenil, ambas usando o mote e a estrutura da fábula, com animais e objetos em forma, linguagem e emoções humanas.
O festival tem agora sua terceira edição em novo formato – na sua primeira fase, foi de 2004 a 2011. A tarde de sábado foi aberta, no salão de entrada do convento, por uma conversa mediada por Carla reunindo o encenador brasileiro André Heller-Lopes, que assina as duas produções, o diretor musical Pedro Carneiro, o maestro do coro Vozes Caelestes Sérgio Fontão e o compositor Vasco Mendonça, debatendo o tema Irreverência criativa sob o signo da tolerância, os dois conceitos centrais desta edição do festival. Uma das ideias centrais era que “tolerância”, nos extremados dias de hoje, precisa ser vista e praticada de maneira não paternalista ou que, no fundo, reforce as diferenças – muito pelo contrário. “É a capacidade de aceitar o outro e sua opinião, no diapasão do humanismo”, definiu Carla na conversa, ressaltando ainda a homenagem ao artista plástico português Almada Negreiros, cuja obra ganhou citações nos cenários.
Fontão e Vasco trouxeram a ideia de um espetáculo em “muitas camadas” nessas duas obras – “não se pode explicar a uma criança porque é boa a música”, diz o compositor, “ela reage ou não; ela sabe. Pensamos na criança como cidadã que é”. André Heller-Lopes, além de festejar a ponte Brasil-Portugal, lembrou que a abertura da janela da ópera para renovação do público, a renovação do repertório são partes de uma "reimaginação”: “Não há ópera para crianças, há sim crianças de todas as idades”, concluiu.
![Cena de 'A menina, o caçador e o lobo' [Divulgação/Festival de Ópera de Óbidos/Nuno Conceição]](/sites/default/files/inline-images/w-sortilegios.jpeg)
Nos jardins, foi montada uma tenda para 400 espectadores, com fosso de orquestra e palco com 12 metros de boca – e uma ótima acústica. A menina, o caçador e o lobo subverte fábulas infantis tradicionais envolvendo a figura do Lobo, arquétipo de ferocidade e maldade (é bom lembrar: muitas dessas fábulas originais foram edulcoradas pelos Irmãos Grimm, Andersen e La Fontaine). Nessa ópera, vem à cena especialmente a história de Chapeuzinho Vermelho (Capuchinho, para os portugueses) e a dos três porquinhos. Com um ensemble de quatro músicos – clarinete, percussão, violoncelo e guitarra elétrica – e regência de Pedro Carneiro. A soprano Lara Rainho, a mezzo Mariana de Sousa e o contratenor Logan Lopez Gonzales desmontam a trama. O Lobo se diz faminto e triste, e não “um monstro”; o Caçador canta: “eu não te caço porque és mau. Caço-te porque me assustas”.
A segunda ópera do dia, L’enfant et les sortilèges, de Maurice Ravel, fez sua estreia há cem anos em Paris. O roteiro foi encomendado a Colette como um ballet-féerie e Ravel decidiu musicar. Um menino é castigado por sua preguiça e pequenas maldades e se vê num universo onde objetos, animais e plantas, vivos e muito reclamantes, querem alguma vingança. A Orquestra de Câmara Portuguesa, em sua formação completa, e o coro Vozes Caelestes têm também a direção musical de Pedro Carneiro. A música sinuosa, repleta de efeitos e de surpresas – em especial na segunda parte, quando surge o jardim – acompanha o desfile de móveis, árvores, pássaros e brinquedos fazendo suas queixas ao menino travesso.
As duas produções trouxeram como marca visual o universo de Almada Negreiros, grande pintor português falecido em 1970. Formas geométricas, cores fortes – como no famoso quadro de Fernando Pessoa à mesa –, desenhos de vestidos e pierrôs vistos em sua obra abraçam a cena. A direção de arte de Nuno Esteves é muito feliz, inclusive no uso de recursos como tapadeiras e biombos e nos figurinos.
A concepção e a direção cênica de André Heller-Lopes deram fluência e conexão a dois universos afastados no tempo, em idiomas diferentes, mas com diversas abordagens em comum – tanto o animismo, nos personagens do jardim, nas feras, insetos e objetos falantes, quanto a relação de poder e dos estereótipos fixados. Alguns personagens de uma das óperas também surgem em cena discretamente na outra.
As próximas atrações do festival são Café Europa, dia 17, ópera de Christoph Renhart com base no libreto Between Memories de Alexandre Honrado, às 15h na Praça da Criatividade na vila de Óbidos; e outro double bill ,sábado e domingo, dias 20 e 21, com a bufa Il segretto di Susanna (Ermanno Wolf-Ferrari com libreto de Enrico Golisciani, com estreia em 1909) e a intensa El Amor Brujo (balé de Manoel de Falla, com estreia em 1916), ambas com a Orquestra Filarmônica Portuguesa dirigida por Darrell Ang.
[O Festival é iniciativa da ABA – Banda de Alcobaça Associação de Artes, em parceria com a Câmara Municipal de Óbidos, com apoio da República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes, do BPI/Fundação ‘la Caixa’, do Círculo Richard Wagner Portugal e com o mecenato da Égide – Associação Portuguesa das Artes]
![Cena de 'O menino e os sortilégios' [Divulgação/Festival de Ópera de Óbidos/Nuno Conceição]](/sites/default/files/inline-images/w-menino.jpeg)
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