Morre o flautista, maestro e professor Ricardo Kanji

por Redação CONCERTO 24/02/2025

Morreu na manhã desta segunda-feira, aos 76 anos, o flautista e maestro Ricardo Kanji. Grande especialista na interpretação da música antiga, ele foi figura central da vida musical brasileira nas últimas décadas. Ele havia sido diagnosticado em janeiro com um tumor cerebral que evoluiu rapidamente.

“Ricardo teve uma trajetória brilhante, nacional e internacionalmente, encantou muitos com sua música extraordinária, e formou muitos discípulos. Deixa um legado incomparável, com vasta discografia”, afirmou seu sobrinho, o violoncelista Alberto Kanji, no início da tarde de hoje.

“Em 1966, fundou o lendário conjunto Musikantiga, com seu irmão Milton Kanji, Dalton de Lucca e Paulo Herculano. Um dos pioneiros mundiais na música barroca, foi sucessor de seu mestre Frans Brüggen no Conservatório Real de Haia e membro fundador da Orquestra do século XVIII. E foi professor da EMESP por muitos anos. Grande conhecedor e especialista em música antiga, fosse na flauta ou na regência, era um mestre. Exerceu seu ofício sempre com paixão e dedicação, sempre atento à mensagem superior do compositor. Como sobrinhos, perdemos um tio querido, um mestre e um exemplo”, completou. 

Kanji nasceu em São Paulo em 1948. Aos 7 anos, começou a estudar piano com Tatiana Braunwieser. A flauta doce surgiria em sua vida três anos depois, durante os estudos com Lavinia Viotti. Mais tarde, aos 15 anos, estudou flauta transversal  moderna com João Dias Carrasqueira e atuando em orquestras de São Paulo.

“O meu pai gostava bastante de música e escutava muitas coisas, assim como o meu irmão. Fui estimulado nesse sentido, mas sinto ter um talento especial para a música. A professora de piano Lavínia Viotti foi uma pessoa muito especial em minha vida, pois me deu uma sólida formação. No final das aulas de piano ela sempre cantava para mim canções de Schumann e de Schubert”, contou Kanji em entrevista ao site da Emesp. “A Lavinia uma vez me mostrou uma flauta e, imediatamente, me encantei pelo instrumento. No dia seguinte, ela me disse que poderíamos usar 15 minutos da aula de piano, que durava uma hora, para estudar flauta. Logo na primeira aula essa equação já se inverteu, com 45 minutos para a flauta e 15 minutos para o piano. Depois, acabei largando o piano, porque eu não levava jeito para esse instrumento, parecia que eu tinha dez polegares. Já na flauta eu encontrei muita facilidade e, em duas semanas, estava tocando melhor do que a minha professora.

Em meados dos anos 1960, ele deu um passo que definiria sua trajetória dali em diante. Mudou-se para os Estados Unidos e para o Canadá. Em 1968, entrou para o Peabody Institute of Music, em Baltimore. Mas conheceu o flautista Frans Brüggen, especialista em música antiga, e resolveu abandonar o curso nos EUA para mudar-se para a Holanda, onde passou a estudar com Brüggen e Frans Vester no Conservatório Real de Haia. Lá, foi premiado no 1º Concurso Internacional de Flauta-Doce de Bruges e passou a integrar a Orquestra Barroca do Conservatório de Haia e da Orquestra do Século XVIII, grupos dos quais foi membro-fundados, flautista e regente. Entre 1991 e 1996, foi diretor artístico da orquestra Concerto Amsterdam. 

“Trabalhei com os melhores músicos da cena de música antiga, na qual me especializei. Na Europa, esse movimento começou há cinquenta anos. Na Holanda, eu e meus professores estudamos muito os tratados, os métodos dos séculos XVII e XVIII. Pesquisamos como a música era feita nessa época para entender o que eles achavam importante em termos de acentuação e de interpretação e conhecer os seus gostos pessoais. Fomos reunindo todas essas informações e desenvolvemos uma forma de tocar baseada nesses conceitos completamente diversa da maneira romântica de se tocar”, contou.

Seu retorno ao Brasil, em 1995, o colocou à frente do Conjunto Vox Brasiliensis, apenas um dos conjuntos com os quais se apresentou e gravou um repertório amplo (foram mais de vinte discos), com obras brasileiras e europeias, ajudando a construir uma escola de interpretação da música historicamente informada no País. Isso ele fez também em projetos pedagógicos, como diretor da área de música antiga da Oficina de Música de Curitiba ou professor de flauta doce da Escola de Música do Estado de São Paulo. Kanji também desenvolveu, ao lado do musicólogo Paulo Castagna e do historiador Ricardo Maranhão, o projeto História da Música Brasileira. O objetivo era estabelecer um corpo de repertório e um histórico de práticas interpretativas, estabelecendo também íntima associação entre criação artística e período histórico.

O verbete dedicado a ele na Enciclopédia Itaú Cultural ajuda a contextualizar a importância de seu trabalho. “A partir dos anos 1960, a música barroca passa por um período de redescoberta. O movimento incial de músicos e pesquisadores holandeses e belgas alastra-se pela Europa e Américas. Essa corrente propõe que a música antiga não seja interpretada com o gosto e os trejeitos românticos, mas que seja fiel ao estilo de sua época. (...) Morando na Holanda em 1969, Kanji presencia esse ambiente e é influenciado por ele. Mesmo não se dedicando ao recenseamento e à edição de obras, sua experiência com os pioneiros dessa nova tendência europeia – como Gustav Leonhardt, Frans Brüggen, Frans Vester – sedimenta-se nas parcerias que realiza com artistas de música antiga ocidental na Europa e no Brasil.”

“Sua preocupação com esse ideário reflete-se igualmente na arte da luteria. Desde que começa a lecionar em Haia, o desejo de aperfeiçoar a sonoridade de seu instrumento leva-o a aprender a construir flautas e a inaugurar um atelier. É com esse espírito que, ao retornar ao Brasil, decide trabalhar com o resgate da produção musical brasileira”, completa o texto. 

Entre seus principais parceiros no Brasil, estiveram músicos como a cravista Rosana Lanzelotte, com quem ganhou diversos prêmios em 2009 pelo disco Neukomm no Brasil. Também gravou com o violoncelista Antonio Meneses. Em 2024, regeu a Camerata Antiqua em apresentação no Teatro Colón de Buenos Aires, marcando os 50 anos do conjunto. 

“Sua colaboração com a Camerata Antiqua de Curitiba foi marcante. Com seu vasto conhecimento e sensibilidade musical, Kanji contribuiu para a valorização da interpretação historicamente informada, elevando a Camerata a novos patamares de excelência”, afirmou em nota divulgada no início da tarde pela Fundação Cultural de Curitiba. 

Em suas redes sociais, a Emesp também manifestou pesar pela morte do músico. “É com grande tristeza que a Santa Marcelina Cultura e a EMESP Tom Jobim comunicam o falecimento de Ricardo Kanji, flautista, regente e querido professor da EMESP Tom Jobim, ocorrido na manhã de hoje. “Seu trabalho incansável como regente, concertista e educador deixou um legado imenso na música clássica e barroca, tanto no Brasil quanto no exterior, com destaque para a premiação como melhor regente de 1999 pela APCA e a nomeação ao Grammy Latino em 2009. Sua partida é uma grande perda, mas seu legado na música e na educação musical será eternamente lembrado. Nossas mais sinceras condolências à sua família, amigos e a todos que tiveram o privilégio de aprender com ele.”

O flautista e maestro Ricardo Kanji [Divulgação]
O flautista e maestro Ricardo Kanji [Divulgação]

 

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