No meio de todas as adversidades, os teatros municipais de São Paulo e Rio de Janeiro conseguiram entregar espetáculos que não apenas honraram, mas elevaram as diversas composições apresentadas: Le villi, de Puccini, Friedenstag, de Strauss, e Os pescadores de pérolas, de Bizet
As realizações culturais no Brasil que tenham um resultado honesto, no sentido de situar obras num contexto de inteligência, de percepção densa, de profundidade nas relações, são incomuns.
Primeiro, porque os investimentos financeiros no campo da cultura caracterizam-se pela penúria, pela instabilidade e pelas incertezas, exigindo grandes esforços para chegar lá. Segundo, porque quando se consegue esse mínimo, com frequência as intenções, decerto generosas, de inflexões ideológicas que nos chegam pela colonização mental norte-americana, incidem sobre os projetos. Então, as convicções radicais, os raciocínios rasos, as ideologias sumárias se encarregam de achatar a complexidade delicada das obras destruindo-as, porque destroem o que elas possuem de verdadeiramente profundo e crítico.
Por isso, os espetáculos de ópera oferecidos no mês de julho pelos teatros municipais de São Paulo e do Rio encaixam-se nessa excepcionalidade do bem fazer.
Ambos tiveram elencos quase que só nacionais. Foram-se os tempos em que grandes estrelas do canto pisavam aqueles palcos augustos. Mas os nacionais deram conta de modo mais do que digno, como grandes artistas que demonstraram ser.
Em São Paulo, foi a dobradinha (palavra tão simpática, tão bonita, tão melhor que o pernóstico double bill) de duas composições curtas: Le Villi (fadas maldosas do folclore eslavo que chegou a Puccini por meio de um conto do francês Alphonse Karr), e Friedenstag (Dia de paz, a partir de uma ideia de Stefan Zweig).
De hábito, concertos, ou espetáculos com óperas curtas, costumam “harmonizar” os programas com obras que possuam afinidades claras entre si. Por exemplo, associar duas óperas de Puccini entre si, ou de Richard Strauss, Le villi e Gianni Schicchi, por exemplo, ou Feuersnot e Friedenstag, seria o esperado pelas convenções. Mas eu sempre acreditei que aproximar obras diferentes ou contrastantes é uma atitude muito fecunda. Uma ilumina a outra, sugerindo aproximações, ou evidenciando diferenças. Foi muito bom assistir à junção desses dois títulos de Puccini e de Strauss no Municipal de São Paulo.
Um ponto comum entre elas, que sobressaiu para mim, foi o fato dessas duas óperas serem, cada uma a seu modo, feministas. Puccini raramente percebe qualidades efetivas nos seus heróis homens: Des Grieux é um adolescente sem força de caráter, deslumbrado pelo amor; Rodolfo prefere ceder Mimi para um amante rico em benefício da saúde dela – benefício que não ocorre no fim das contas; Pinkerton é um predador sexual calhorda; Ruggero é um boboca; Calaf é de um egoísmo monumental, assistindo à tortura e à morte de Liù sem mover uma palha. Os tenores de Puccini quase sempre têm um caráter lamentável. Ao contrário, suas heroínas possuem, todas, complexidade de caráter, fenomenal força interior, grandeza que se evidencia ao lado de seus parceiros homúnculos.
Richard Strauss também cria figuras femininas imensas, poderosas, admiráveis: não é preciso enumerá-las aqui. Mas, para além desse ponto comum mais genérico, as situações, em Le villi e Friedenstag permitem perceber contrastes e afinidades.
Le villi lembra o mito de Orfeu: o homem que erra no amor termina despedaçado por vingadoras sobrenaturais. Aqui, a dualidade do masculino e do feminino dispõe-se assim: homem fraco moral e eroticamente (no sentido de eros, amor) contra mulher que ama e cuja traição dá forças a ela para a violenta vingança do além-túmulo. Anna, a noiva traída, torna-se uma justiceira.
![Eric Herrero e Gabriella Pace em cena de 'Le villi' [Divulgação/Larissa Paz]](/sites/default/files/inline-images/w-le_villi.jpg)
Em Friedenstag, os homens são portadores da guerra, do mal, e Maria, que sintetiza em si as mulheres, longe do modelo conservador Kinder, Küche, Kirche (filhos, cozinha, igreja), tão prezado pelos nazistas, possui uma força alegórica e heroica, encarnando o bem e a paz. Nos dois casos, portanto, a mulher enfrenta o que há de mal nas pulsões masculinas
São duas óperas pouco conhecidas, Friedenstag sendo, salvo erro, montada pela primeira vez no Brasil. Elas mostram o gênio de dois compositores atuando poderosamente, um não ficando atrás do outro.
Quanto às qualidades musicais das duas óperas a primeira palavra vai para a regência de Priscila Bomfim, tão fluente, tão fina, sem perder a veemência eloquente, capaz de ritmos obsessivos e fortes, assim como de transparências e sedosas finuras, enfrentando as partes mais complexas das duas composições com uma segurança que as deixava claras. Esperemos vivamente mais espetáculos dirigidos por essa regente de tão grandes qualidades.
No espetáculo a que assisti, no sábado, dia 19, Le Villi teve como protagonistas Gabriela Pace (Ana), Eric Herrero (Roberto – 17 anos depois de ele ter cantado o mesmo papel no Municipal), Rodrigo Esteves (Guglielmo), que conduziram a obra ao seu término com eficiência e emoção.
André Heller-Lopes foi o responsável pela montagem. Ele é um brilhante encenador. No entanto, eu me senti desconcertado com suas escolhas para o primeiro ato de Le villi. Nada que preludiasse um mundo sobrenatural. Um enorme espaço, ascético, moderno, com paredes imitando vidro e caixilhos, frias, no sentido do Play Time de Tati. Ao fundo, num andar superior, um depósito de malas. Muitas mesas. Alguma coisa entre o hall de aeroporto ou vasto escritório. Ele saturou esse espaço com gente em roupas recentes, desembrulhando pacotes ou fazendo sei lá o que. Nenhuma empatia, muito distanciamento.
Essas escolhas decerto fazem sentido para o encenador em seu projeto, mas isso não basta. É preciso que elas façam sentido também para o espectador, de modo a que ele possa se envolver com a obra. Puccini não pode ser vítima de nenhum brechtianismo ou de adesão ao regietheater, e não acredito que essa tenha sido a intenção. De qualquer forma, tenho para mim que uma boa montagem não deve depender de explicações ou justificações do encenador.
O segundo ato, porém, adquiriu impressionante potência cênica. As paredes frias desapareceram na obscuridade que tomou conta. As mesas vazias, que as Villi se encarregavam de modificar a disposição, transformavam-se em acessórios dramáticos com força efetiva. A cena tornou-se ao mesmo tempo dionisíaca e trágica, associando ação, música e dança, arrebatando o público e permitindo que a obra revelasse seus poderes do modo mais pleno.
Strauss permitiu a André Heller-Lopes desdobrar seu grande talento como diretor de cena. A ópera de Strauss é estática, próxima do oratório. Friedenstag, estreada em 1938, mostra um sentimento pacifista bastante genérico, o que contribuiu para que os nazistas pudessem aderir a ela por um ou dois anos, antes da guerra. Com pouca ação, com personagens mais alegóricos do que complexos, ela traz sérias dificuldades ao encenador.
A montagem de São Paulo criou cenários em que uma imensa fotografia de biblioteca bombardeada ostentava a oposição entre cultura e barbárie. Criou também uma fortaleza que tinha algo do cinema expressionista, opressiva e inquietante.
![Eiko Senda e Leonardo Neiva em cena de 'Friedenstag' [Divulgação/Larissa Paz]](/sites/default/files/inline-images/w-opera-friedenstag-de-strauss-40-larissa-paz.jpg)
A produção evocou o terror nazista sem insistir na transposição. Exaltou a força simbólica do desfecho, fazendo convergir o sentido coletivo na figura de Maria. Sublinhou o jogo de oposições para criar um final poderoso, concentrando o apelo numa síntese pacifista. Montagem exaltante e comovente: a terrível cena dos famintos nos remetia diretamente a dolorosas situações que ocorrem em nossos dias.
Esse excelente espetáculo completou-se com uma protagonista de grande qualidade. Maria é um papel tremendo para qualquer cantora, e Eiko Senda soltou todo o poder de sua voz, enfrentando a orquestração e o coro de Strauss com energia épica. Leonardo Neiva se opôs a ela num belo nível de canto, e todos os outros solistas foram dignos da composição: assinalo, num destaque, a voz afirmativa e inconfundível de Saulo Javan no papel menor do Sargento.
A Orquestra Sinfônica Municipal, animada por uma batuta tão qualificada, estava em grande forma. É preciso assinalar a excelência do Coro Lírico Municipal sob os cuidados de Hernán Sánchez Arteaga.
Velhos tempos
No Rio, pude assistir a representações de Os pescadores de pérolas com os dois elencos, nos dias 24 e 26 passados. A montagem nos transportava para velhos tempos, muitas décadas atrás. Não mostrou nenhum intuito de atualizar o que quer que seja. Os cantores se dispunham convencionalmente: braços e indicadores em riste para maldições, duetos cantados de joelhos, gesticulação veemente para manifestar o ódio ou o horror. Estávamos muito longe da época em que Gerald Thomas escandalizava, fazendo com que jornais debatessem seu Navio fantasma (um deles deu uma manchete com um dos piores trocadilhos: “Senta, que o Gerald é manso...”), ou mostrava suas nádegas para a plateia enfurecida no final de um Tristão. Foram Pescadores produzidos comme autrefois.
Não há mal nisso. Existe hoje um esgotamento nas produções ditas “modernas”, com certo afastamento do público nos grandes teatros internacionais. Uma das saídas para essa crise – não a única – pode estar num torniamo all’antico bem pensado e bem resolvido.
A montagem de Julianna Santos funcionou muito bem. Tinha um destroço de navio como dispositivo principal, associado a efeitos de marolinhas e de subida da maré muito eficazes. No fundo, projeções evocavam o mar, a praia, as pérolas etc., às vezes neutras, às vezes fazendo concorrência à ação. A profundidade do palco foi bastante reduzida pelo pano de fundo, trazendo a ação para o proscênio, afirmando os personagens e criando uma sensação de intimidade. Momentos coreográficos muito felizes incluídos por Bruno Fernandes e Mateus Dutra se encadeavam e fluíam, com verdade e naturalidade.
Essa fluência se deveu muitíssimo à regência de Luiz Fernando Malheiro. Seu sentido da plasticidade musical é prodigioso. Diante do Coro e Orquestra Sinfônica do TMRJ, que ele fez brilhar, sua direção desenrolou um tecido de emoções – urdindo suspense, arrebatamento e força expressiva, provocando aquele simpático efeito emotivo que os italianos chamam de pelle d'oca.
![Cena de 'Os pescadores de pérolas', no Theatro Municipal do Rio [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-pescadores_0.jpg)
O elenco da primeira apresentação contou com Ludmilla Bauerfeldt, soprano de grande nível internacional, que encarnou uma Leila esplêndida, oferecendo soberbamente cintilações e nuances de timbre. Difícil pedir melhor.
Vinicius Attique ofereceu um Zurga soberbo. Ele é um cantor que está se afirmando nas cenas internacionais, o que não é uma surpresa, dadas as suas belas qualidades. A admirável cena no primeiro quadro do terceiro ato, L’orage s’est calmée, música que parece carregar toda a tristeza do mundo, foi um grande momento, que culminou com o dueto em que Leila vem suplicar a ele pela vida de Nadir.
Justamente, Nadir, interpretado pelo tenor argentino Carlos Ullán, não estava na mesma categoria que os precedentes. Sem graves, negociando os agudos com dificuldade, o timbre na máscara, anasalado, ele, ainda assim, sustentou-se. Talvez estivesse num mau dia.
O Nadir do outro elenco, o jovem tenor Caio Duran, foi superior. Sua voz não é muito grande, mas é belamente timbrada e se projeta muito bem, com elegância e musicalidade: a ária Je crois entendre encore mereceu aplausos entusiasmados e justificados.
Ao lado dele, o barihunk Homero “cadê minha camisa” Velho, com sua experiência, seu domínio de palco, impôs um majestoso Zurga, e a Leila de Michele Menezes foi aplaudidíssima.
Em suma, no meio de todas as adversidades, os teatros de São Paulo e Rio de Janeiro conseguiram entregar espetáculos que não apenas honraram, mas elevaram as diversas composições apresentadas, reforçando o valor e a teimosia de alguns projetos que conseguem ainda atingir alta qualidade neste país.
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.