Municipal do Rio apresenta ‘Cantata de Natal’ de Ricardo Tacuchian

Há 41 anos, o compositor Ricardo Tacuchian relutantemente atendeu a uma encomenda do amigo Roberto Duarte para uma peça natalina para coro e orquestra. Na época, tinha, segundo ele, “uns mil empregos”. Além disso, o tema não o entusiasmava. Finalmente, foi convencido, mas não aceitou o texto proposto, de autoria de um religioso.

“Era um libreto rígido, convencional”, lembra Tacuchian. “Decidi mergulhar nos Evangelhos, na poesia, nos festejos populares.” O resultado foi uma obra que, desde então, tem uma carreira “acima da expectativa” define ele. E é essa obra que encerra as atividades do Municipal do Rio de Janeiro em 2019, em concerto único no dia 23 de dezembro, com a Associação de Canto Coral do Rio e a Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro. São 120 cantores e 55 músicos na orquestra em formação clássica. 

“Usei critérios poéticos para selecionar trechos do nascimento de Cristo, dos evangelhos de Mateus e Lucas”, prossegue o compositor. “E busquei textos laicos para estabelecer um contraponto. Assim, poemas de Manuel Bandeira e Drummond, além de peças do folclore fluminense se encadeiam.” Esse encadeamento não foge do contraste estilístico, já que a música acompanha as fontes literárias, passeando por diferentes ambientes e estilos.

Escrita para soprano, barítono e narrador masculino – papel que pode ser do próprio barítono, como no caso desta apresentação –, a cantata passeia pela poesia popular das lapinhas e folias de reis, manifestações folclóricas que o Norte fluminense mantém vivas. “Chamo tudo isso de ‘catolicismo de rua’ e essas festas conheci a fundo na época em que fui animador cultural da Secretaria de Cultura do Rio, com Darcy Ribeiro”, conta Tacuchian. “E trouxe os dois poemas contrastantes – o de Bandeira, mais clássico, o de Drummond, mais ferino. Assim, temos um Magnificat, do Evangelho de Lucas, em que Maria canta a alegria de ser escolhida como mãe de Jesus em forma de modinha brasileira; temos um camelô apregoando bugigangas de Natal, seguindo a dica de Drummond no poema de tom ferino em relação ao consumismo.”

“Vi nascer um deus / em plena calçada /entre camelôs; (...) a luz da boate / mal lhe debuxava / o mínimo perfil. / Vi nascer um deus / entre embaixadores /entre publicanos / entre verdureiros /entre mensalistas, / no Maracanã / em Para-lá-do-mapa, / quando os gatos rondam / a espinha da noite / os mendigos espreitam / os inferninhos / e no museu acordam as telas” (Carlos Drummond de Andrade, em Lição de Coisas).

A Cantata de Natal tem sido programada pelo Brasil e no exterior e foi gravada pelas TV Cultura e Brasil. A mesma obra foi apresentada no dia 12 de dezembro, na Sala Cecilia Meireles, com a Orquestra Sinfônica da UFRJ sob regência de Ernani Aguiar, e também me Mato Grosso e Minas Gerais. 

“Só esse mês foram quatro apresentações no Brasil, sem falar nos trechos apresentados isoladamente, caso do Magnificat em forma de modinha e excertos corais”, pontua Tacuchian. “Foi uma obra que fiz sem grandes pretensões. Parece que deram certo as minhas estripulias com textos de Natal.”

Aos 80 anos recém-completados, Tacuchian constata que seu trabalho, apesar de muito tocado e gravado – saiu em diversos CDs esse ano, um deles inteiramente dedicado à sua obra para viola –, não esteve no repertório das grandes orquestras, mesmo na data redonda. 

“Tenho regularmente algo como 60 apresentações ao vivo por ano, e esse ano o número subiu bastante, incluindo a programação no exterior – na França, na Grécia, nos Estados Unidos, na Rússia, no Líbano e na Polônia. Mas, tirando a Sinfônica da UFRJ e a Nacional da UFF, que estreou no Brasil minha Sinfonia das florestas, fui solenemente esquecido pelos grandes grupos sinfônicos. Mas foi um ano de festejos e gravações importantes. Estou feliz”, encerra.

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