A Orquestra do Festival de Inverno de Campos do Jordão apresenta neste final de semana seu segundo programa, sob o comando do maestro Neil Thomson – e, no repertório, está uma obra-chave da música brasileira no século XX: Santos Football Music, de Gilberto Mendes.
A peça, de 1969, recria à sua maneira uma partida de futebol. Participam a orquestra e seu regente (que se revela o juiz da partida, expulsando um dos músicos a certa altura da obra); sons pré-gravados, com trechos de locuções de partidas reais; e o público, que é ensaiado logo antes do concerto a responder a placas que serão levantadas durante a execução, com dizeres como “Cantem”, “Falem”, “Vogais”, “Gol” e assim por diante.
Santos Football Music é exemplo do aspecto teatral de certa parte da produção de Gilberto Mendes. O compositor Almeida Prado a definia como a única obra autenticamente brasileira sem ser folclórica. E o próprio compositor lembra, no livro Uma Odisseia Musical, como surgiu a ideia para a composição.
“O antigo jornalista, hoje artista plástico, Enio Squeff me perguntou certa vez por que eu não usava o futebol como motivo para uma obra musical (...). Afinal, eu era de uma cidade que possuía, naquele tempo, o time de futebol mais famoso, campeão mundial, com Pelé à frente. Enio insistia. Mas eu expliquei que não tinha o menor interesse em futebol. Em outra vez, eu vinha de São Paulo para Santos e o rádio do carro – era um domingo – irradiava um jogo de futebol e, de repente, eu senti uma grande música no rapidíssimo falar do locutor, narrando a partida. Era como que um canto falado em ‘rectus tonus’, em boa parte do tempo, ascendendo e descendendo segundo a emoção provocada no locutor pelos lances que ele descrevia. Da semente que Enio lançou nasceu a ideia, naquele instante. Imaginei três irradiações simultâneas, como três instrumentos de um mesmo naipe, na orquestra, soando ora dois, ora um, três, nenhum. Um contraponto a três partes. Estava começando a composição do que eu intitularia Santos Football Music, em inglês, seguindo o exemplo do nome Santos Football Club, também em inglês. Foram os ingleses que inventaram o futebol, segundo me consta.”
Mendes entendia a obra como um dos pontos mais experimentais de sua criação. “Foi um trabalho altamente experimental, equivalente ao que realizei quando compus nascemorre. As duas obras são os momentos máximos de meu radicalismo composicional, ao mesmo tempo que os pontos inicial e final, entre 1962 e 1969, do processo de desenvolvimento de uma linguagem musical, com pretensões de ser inteiramente nova, em termos brasileiros. A minha última invenção mais radical.”
Como entender esse radicalismo? Ao longo do tempo, algumas sugestões foram dadas por ouvintes atentos. Na época da estreia, o crítico J. Jota de Moraes escreveu que a peças “se despe do ar casmurro e cavernoso” do espaço de concerto, no que foi seguido, anos mais tarde, por José Miguel Wisnik, para quem há, na execução da peça, uma profanação da experiência da sala de concerto. Se há alguma dúvida disso, basta evocar uma história contada pelo próprio Mendes sobre a apresentação da obra no Theatro Municipal do Rio de Janeiro: os músicos da Orquestra Sinfônica Brasileira se recusaram a tocar a peça, afirmando que não eram jogadores de futebol, e só voltaram atrás quando o compositor anunciou que retiraria a peça do programa e voltaria para casa...
“De fato, além de o público fazer o papel inverso do de um concerto normal, (no qual mal pode tossir ou se mexer na cadeira), tendo então que fazer um 'barulho' organizado, a figura do maestro é também dessacralizada nesta obra: o regente, que se mantém na primeira parte em sua função normal, de repente cabeceia uma bola de futebol que é jogada dos bastidores e assume o papel de árbitro, apitando em uma performance teatral de alguns músicos com a bola e trave e expulsa um dos músicos com cartão vermelho”, escreve a compositora Denise Garcia em publicação do XIX Congresso da ANPPOM (leia o texto completo aqui).
Para ela, “o que tem de extraordinária essa obra é o fato do compositor ter trazido de maneira tão singular para dentro do espaço do concerto, o ambiente sonoro de um evento de massa, o futebol”. “Gilberto Mendes é antes de tudo um escutador do mundo e nisso ele se assemelha aos compositores de música eletroacústica com afinidades com a ‘escola’ schaefferiana. Ele ouve como música tanto aquilo que se convenciona chamar de música, como outros eventos sonoros e nisso ele se coloca também ao lado de John Cage: a narração de um jogo de futebol é escutada como música e a manifestação sonora das torcidas em um jogo.”
Gilberto Mendes tinha grande estima por Santos Football Music. Em Uma Odisseia Musical, ele escreve que “se as gerações futuras se lembrarem só do meu Santos Football Music e de Beba Coca-Cola, me darei bastante satisfeito, lá em cima, sobretudo se estiver privando da companhia dos anjos wimwendersianos”. Lembrarão de muito mais. Mas com carinho especial pela peça.
'Santos Football Music' será apresentada no sábado, no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão, sob regência de Neil Thomson; clique aqui para ver mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO
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