"Somos todos filhos de Stravinsky", diz compositora Jocy de Oliveira

por Luciana Medeiros 06/04/2021

“Perguntas são sempre ruins porque exigem respostas”, disse Igor Stravinsky a uma jovem Jocy de Oliveira na sua segunda e última visita ao Rio de Janeiro, para tocar com a Filarmônica de Londres. Era 1963 e o programa tinha Feux d’Artifice, a Sinfonia em três movimentos e Le baiser de la fée

A pianista, que havia conhecido o compositor em Berlim sete anos antes – ao acompanhar o marido Eleazar de Carvalho, que regeria a Filarmônica de Berlim –, estava encarregada de produzir um artigo para a revista Manchete. “Graças a esse pedido, rascunhei um diário daquele extraordinário momento”, escreve Jocy no seu livro Diálogo com Cartas, pelo qual ganhou o prêmio Jabuti. 

O primeiro e robusto capítulo é dedicado à convivência com o compositor e seu entourage – a mulher Vera (“duas vezes maior que Stravinsky”) e Robert Craft, regente americano que dedicou boa parte de sua vida a trabalhar com o mestre.

Nessa terça, dia 6 de abril de 2021, completam-se 50 anos da morte de Igor Fiódorovitch Stravinsky, nascido em 1882 na cidade russa Oraniembaum. Não adianta procurar no mapa: hoje o lugar, perto de São Petersburgo, se chama Lomonosov, em homenagem a um fabricante local de vidros coloridos. Oraniembaum, por sua vez, quer dizer laranjeira em alemão antigo; uma estranha denominação para o lugar gélido, colado à Finlândia. A explicação é de que havia um palácio com uma bela estufa de plantas exóticas.   

Exótico e extraordinário como uma laranjeira no ártico, Igor Stravinsky foi mestre das rupturas. Galante, tinha 81 anos na visita ao Rio e proporcionou à bela Jocy – na casa dos 20 anos e em carreira ascendente como intérprete – farto material para seu diário e, tantas décadas depois, para seu livro premiado. Champanhe no café da manhã, macumba num morro do Leblon, hipocondria e o interesse pelos amores clandestinos nos hotéis cariocas são algumas das excentricidades que ela descreve em cores vivas – e tom carinhoso – no capítulo dedicado ao compositor. 

“Para mim, tudo a respeito dele é lembrado com muito carinho. Ele nasceu e morreu carregando as tradições, era um russo vivendo em diversos países e por fim nos Estados Unidos, onde sentia as diferenças da cultura”, diz ela. 
Na percepção de Jocy, lá em 1963, aquela já “era uma sociedade para a qual ele deixaria uma herança monumental, mas que de certa forma dela não fazia mais parte”. Mas não seria esse descompasso a condição basal, definidora até, da genialidade de Stravinsky? 

“Sim, este descompasso era uma condição permanente de sua genialidade”, concede Jocy. “Mas no fim de sua vida, já podíamos perceber que se desprendia deste mundo e não tinha tempo a perder com o supérfluo. Seus amigos escritores, compositores, poetas, pintores já tinham partido.” Uma espécie de turma do fundo da sala da primeira metade do século XX, gente que atravessou duas guerras mundiais e desafiou cânones e engessamentos, moral e bons costumes. 

Apesar de um desinteresse patente – e muito natural àquela altura da vida – por apupos, orquestras e plateias, estava sintonizado com a música eletrônica que ganhava corpo nos anos 1960. Jocy relata que Stravinsky via no teatro o futuro da música eletrônica. Mesmo que, de forma geral, essa profecia não tenha se realizado – ela própria é uma exceção –, reforça: “Stravinsky era também um homem de teatro. Assim, ele entendeu a dimensão da música eletrônica no futuro”. Ela lembra que Luciano Berio e outros compositores da época o chamavam de Père Igor. “Somos todos filhos de Stravinsky”, afirma.

Foi o porteiro do Hotel Pera Palace, em Istambul, que deu a notícia a Jocy de Oliveira. Ela relembra, nessa passagem das cinco décadas daquela partida: “Ele me disse: Stravinsky está morto. Atravessei a Ponte de Gálata caminhando, emocionada, até a Cidade Velha. Sentei-me num banco em frente à Mesquita Azul e deixei minha memória vagar, ouvindo os cantos dos minaretes. Lembrei que já ouvira Stravinsky falar sobre sua morte, inclusive quando estava compondo seu Réquiem. Alguns dias depois, recebi uma tocante carta de Robert Craft, na qual me descrevia seus momentos finais. E, tantos anos depois, ele gravou, especialmente para a minha opera multimídia Revisitando Stravinsky, um depoimento muito especial, com detalhes da cerimônia de despedida de Stravinsky, na Ilha de San Michele, em Veneza, onde quis ser enterrado junto ao túmulo de Sergei Diaghilev.”

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Lindo depoimento e faz parte de uma memória coletiva universal. A figura mais marcante da música no século XX. Como esse contato nos toca, com tanta proximidade em um momento de tamanho isolamento.

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