Em meio ao domingo de Páscoa mais atípico de nossas vidas, em que o planeta, sitiado por uma pandemia, clama por isolamento, dois dos músicos mais ativos da cena musical brasileira lançaram um álbum que celebra o convívio, o diálogo e a superação de barreiras. O Estúdio Monteverdi, de André Mehmari, acaba de colocar nas plataformas de streaming (e, se o contexto pós-quarentena permitir, talvez também edite em formato físico) Encontros com Bach, do próprio Mehmari e Emmanuele Baldini.
Se algo permite a considerarmos a música de Johann Sebastian Bach (1685-1750) como universal é justamente a multiplicidade aparentemente inesgotável de leituras a que ela se abre. Transcrito para formações heteredoxas ou instrumentos que sequer existiam à época do compositor (como o saxofone e a tuba), relido pelos sintetizadores de Wendy Carlos, pelas vozes do Swingle Singers, pelo jazz de Jacques Loussier ou pelo instrumental brasileiro do Zimbo Trio (a lista tenderia ao infinito), Bach soa como o denominador comum, o marco civilizatório pelo qual anseia um mundo que parece ter trocado a sabedoria da conversa pela insensatez da gritaria.
Assim, em janeiro deste ano, quando a calamidade que agora se abate sobre nós se encontrava tão próxima, porém experimentávamos todos uma sensação enganosa de normalidade, o multiinstrumentista e compositor brasileiro e o spalla italiano da Osesp encontraram-se na Universidade de Toronto, no Canadá, para estrear Conversas com Bach, que Mehmari escreveu especialmente para o projeto. Com 17 minutos de duração, trata-se de uma suíte em seis movimentos (Ária Brasileira, Reza, Scherzo Digitale, Alla Siciliana, Introduzione, Animato), moldada dentro da típica “poliestilística” mehmariana – um jogo ardiloso de citações que vai de Cartola, Pixinguinha e o inescapável Villa-Lobos (a principal referência de “bachiano brasileiro” para o compositor) a algumas das mais célebres partituras de Bach (que não enumerarei aqui para não estragar o prazer de quem quiser identificar), que os instrumentistas executam com um prazer que transparece a cada instante.
Como conta na entrevista que deu a João Luiz Sampaio na edição de abril da Revista CONCERTO, Baldini está comemorando 16 anos de Osesp – e esse tempo todo de Brasil parece ter sido suficiente para ele assimilar as peculiaridades de nossa música, que executa com enorme familiaridade, e sem nenhum sotaque estrangeiro (qualidade igualmente demonstrada no breve, lúdico e nazarethiano Choro Perpétuo).
Deleite no fazer musical conjunto também transparece na Sonata para violino e baixo contínuo em mi menor BWV 1023, que abre o disco, e na qual o violino de Baldini é acompanhado com bom gosto, senso de estilo e descrição pelo piano de Mehmari.
Mas o coração do álbum é a célebre Chacona BWV 1004, que aqui comparece em três versões: a original, para violino solo; para piano, logo em seguida; e, ao final, como uma espécie de faixa-bônus, para cravo.
Em 28 de março, já durante a quarentena, Baldini executou essa obra sozinho, no palco vazio da Sala São Paulo, em transmissão ao vivo pela internet – uma ocasião que não poderia ser mais simbólica. Não custa lembrar que o violinista é natural de Trieste, cidade do escritor Italo Svevo (1861-1928), que, em seu romance A consciência de Zeno (1923), chama a Chacona de “música nascida de quatro cordas como uma estátua de Miguel Ângelo de um bloco de mármore”. Na obra-prima de Svevo, o protagonista ouve, relutante, seu rival, Guido, executar a peça: “Eu protestava, e Bach seguia seguro como o destino”. Com aquele violino, “a música se transformava em vida, luz e ar”. Como as redes sociais andam inundadas de recomendações para a quarentena, fica aí mais uma: ouvir o Bach elegante, orgânico e sem afetação de Baldini, e visitar a prosa visionária de seu ilustre conterrâneo triestino.
Na ordem do disco, a Chacona pianística de Mehmari vem logo depois da interpretação de Baldini, o que é a melhor orientação para seu entendimento. Tire da cabeça a versão ultra-virtuosística do toscano-germânico Ferruccio Busoni (1866-1924); os projetos poéticos de um e de outro são completamente diferentes. Enquanto Busoni produziu um item extrovertido para ganhar as salas de concerto, a sóbria leitura de Mehmari brota diretamente da partitura para violino, e é também informada por sua experiência como cravista. Por sinal, sua leitura da Chacona em um cravo de dois manuais soa tão natural que dá vontade de imaginar Bach concebendo a música ao teclado, antes de transportá-la para as cordas do violino.
A Chacona é uma daquelas obras gigantescas não apenas do ponto de vista técnico, mas sobretudo do musical, emocional e intelectual. Soa como uma jornada espiritual introspectiva e transformadora, que tem aqui em Baldini e Mehmari guias inspirados e dedicados, que refletiram por décadas a seu respeito antes de cristalizarem suas visões nas gravações que agora nos convidam a ouvir. Se a Chacona habitualmente induz o ouvinte, nas palavras de Svevo, “a olhar para o alto, estático, como a uma coisa novíssima”, essa experiência se torna ainda mais pertinente em tempos nos quais estamos forçados a ficarmos isolados, solitários, contemplando nossos próprios fantasmas e inquietações. Encontremo-nos com Bach.
Leia mais
Colunistas Os 100 anos de Yara Bernette, por Irineu Franco Perpetuo
Colunistas 18 vezes Aida, por João Luiz Sampaio
Colunistas Memórias de Naomi Munakata, por Camila Fresca
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.