Excelentes apresentações da Orquestra Barroca de Veneza e da Gaechinger Cantorey revelam riquezas de obras-primas da música antiga
Assisti na semana passada, no Teatro Cultura Artística, a dois excelentes concertos de música barroca. Primeiro, na terça-feira dia 29, dentro da programação da Tucca, a Orquestra Barroca de Veneza e a violinista Chouchane Siranossian interpretaram As quatro estações de Antonio Vivaldi. Na quinta, dia 31, na série da Cultura Artística, a Gaechinger Cantorey da Internationale Bachakademie Stuttgart apresentou O messias, de Georg Friedrich Händel.
A música antiga, que é como se convencionou denominar toda a música escrita no período anterior ao Classicismo (ou seja, de cerca 1800 para trás), é um desafio interpretativo permanente. Apesar de estarmos próximos daquele tempo (pelo menos relativamente à história da cultura ocidental) – Vivaldi nasceu em 1678, Händel em 1685, portanto há menos de 350 anos –, não é possível saber com exatidão quais eram as características e maneiras de interpretação da época, os andamentos, os fraseados, as dinâmicas, as articulações, os ornamentos, as agógicas e todo o resto. Se por um lado os estudos musicológicos são enriquecedores e ampliam a nossa percepção histórica, por outro, a interpretação musical é sempre “de hoje”, pois quem a executa é alguém vivo, de carne e osso, que está aqui hoje dividindo com a gente os prazeres e as agruras da contemporaneidade.
Os concertos da semana passada foram bem diferentes um do outro, mas, cada um a sua maneira, absolutamente arrebatadores. Ambos foram realizados com instrumentos da época do Barroco e em interpretações “historicamente informadas”, ou seja, em apresentações que pretendem ser o mais fiel possível à prática interpretativa da época em que as obras foram escritas e tocadas.
O concerto da Orquestra Barroca de Veneza iniciou-se com obras de Antonio Vivaldi, de Baldassare Galuppi e de Benedetto Marcello. Vieram então os quatro concertos para violino e orquestra das Quatro estações.
As quatro estações de Vivaldi pertencem provavelmente aos top 10 dos hits “clássicos” do mundo moderno. Já as ouvimos de todas as maneiras e em todas as circunstâncias, até em publicidade de shampoo. Então, executar uma leitura que prenda um ouvinte tarimbado já é por si um diferencial. Mas a apresentação da Orquestra Barroca de Veneza com Chouchane Siranossian ao violino e sob direção do cravista e maestro Andrea Marcon foi bem além disso, revelando uma originalidade surpreendente.
Sem dúvida, parte importante da genial interpretação deveu-se à compreensão da linguagem musical bem como ao brilhantismo de Siranossian e de Marcon, que tocaram suas partes com a liberdade e a competência que o estilo barroco exige. Isso, porém, só foi possível graças ao suporte da pequena orquestra – 12 instrumentistas –, que tocou com entusiasmo e vibração e soube extrair todos os magistrais efeitos da partitura de Vivaldi. Era visível a sinergia dos executantes, que, liderados pelo spalla, tocaram em pé (à exceção das duas violas da gamba). E o que falar da alegria contagiante da solista Chouchane Siranossian, uma virtuose de grande personalidade, mas absolutamente integrada à malha sonora do conjunto? Sensacional!
Totalmente diferente, mas no mesmo diapasão da excelência, apresentou-se, na quinta-feira, a Gaechinger Cantorey da Bachakademie de Stuttgart, da Alemanha, sob direção de seu titular, o maestro Hans-Christoph Rademann, e com os solistas Veronica Cangemi, Marie Henriette Reinhold, Benedikt Kristjánsson e Tobias Berndt. No programa, outra obra-prima do Barroco, O messias, de Händel, na versão em que foi estreado em Dublin, em 1742, que tem algumas pequenas diferenças na composição e uma formação instrumental ligeiramente menor do que a obra que acabou consolidada no repertório.
Com uma leitura bem mais sóbria se comparada aos colegas italianos – não poderia ser diferente, Händel era alemão e viveu a maior parte da vida em Londres e, diferentemente dos concertos instrumentais de Vivaldi, temos aqui um oratório com coro e vozes – a Gaechinger Cantorey impressionou pelo cuidado e rigor interpretativo e pela incrível, realmente espetacular performance de seu coro. Formado por vinte cantores – cinco em cada naipe –, o coro demonstrou um grande virtuosismo vocal, com naipes equilibrados, afinação precisa, dinâmicas controladas e articulações surpreendentes – uma interpretação no todo irretocável. Também foram excelentes os quatro solistas – com destaque para as vozes masculinas –, que, equilibrados na projeção vocal, compuseram muito bem e organicamente com o conjunto.
A orquestra de instrumentos de época da Bachakademie Stuttgart teve ótima participação. Formada por cerca de vinte músicos, com cordas, dois oboés, dois trompetes, percussão e órgão, ofereceu uma interpretação de alto nível artístico, sensível e musical, conduzida pelo maestro Rademann. Foram duas horas e meia que nos revelaram a riqueza de uma das maiores criações do Barroco, que é o Messias.
Para finalizar, quero ainda fazer um comentário sobre a ótima acústica do novo Teatro Cultura Artística, que sem dúvida contribui para essas apresentações em tão alto nível, se é que não as potencializa. Tanto para a formação um pouco mais reduzida da Orquestra Barroca de Veneza, como para os cerca de 45 artistas da orquestra e coro da Gaechinger Cantorey, o Cultura Artística oferece uma condição acústica privilegiada. Pelo menos para o meu gosto (ainda que boa acústica não seja questão de gosto!), a música naquele palco apresenta uma reverberação ideal, com ótima projeção de timbres e dinâmicas em todos os registros.
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