Canções de dor, morte e silêncio

por João Luiz Sampaio 19/04/2021

Se ainda é necessário defender a criação contemporânea como parte fundamental da vida musical, há várias formas de fazê-lo. E uma delas é reforçar a percepção de que, se a arte é sempre retrato de seu tempo, nossa época tem temas e questões prementes para os quais a criação artística pode oferecer espaço de reflexão.

É tal espaço que o compositor Eli-Eri Moura cria com Passionis de Flamma, ciclo de canções inspirado em três casos reais de feminicídio. A obra abriu o recital da soprano Gabriella Pace e da pianista Katia Baloussier na noite de sábado na Sala Cecília Meireles – primeiro recital do teatro a receber público desde o início da pandemia.

Em uma entrevista recente a Irineu Franco Perpetuo publicada na Revista CONCERTO de abril, o compositor falou sobre a estrutura da obra, que nos permitiria dividi-la em três partes distintas.

Cada conjunto de quatro canções (o ciclo tem doze ao todo) aborda um dos casos em que a obra se inspirou. O primeiro conjunto relembra Isabela Pajuçara, estuprada e assassinada após uma festa em Queimadas, na Paraíba. O segundo trata da história de Mayara Amaral, violonista de 27 anos, assassinada a marteladas pelo namorado, que em seguida queimou seu corpo. E o terceiro evoca um episódio ocorrido na Nicarágua, onde Vilma Trujillo, de 25 anos, foi amarrada em uma árvore e queimada viva por evangélicos fundamentalistas que queriam “expulsar o demônio” de seu corpo.

Moura explicou também como se organiza cada conjunto. A primeira canção exaltaria as virtudes da mulher; na segunda, se dá a acusação e o julgamento segundo óticas machistas; na terceira, são evocados diretamente os casos descritos; e, na quarta, se dá o que o compositor chama de “redenção simbólica” da mulher.

 

Ainda que a estrutura esteja colocada de maneira clara, as canções seguem um fluxo contínuo, dialogam – no tema, no texto e na música – entre si. E nesse jogo de referências está um dos aspectos mais interessantes da obra.

No primeiro quadro, por exemplo, a terceira canção promove uma conversa entre Isabela e sua mãe. Sucinta, entrecortada. Isabela pede que parem. Sua mãe contempla o quarto que, um ano depois, permanece como sempre esteve. A música, entre a primeira e a terceira canção, faz uma inflexão, vai da densidade e violência a uma economia de meios que, com o texto, parece nos lembrar que restou do assassinato o vazio, tão dilacerante quanto impronunciável.

Quando passamos ao segundo quadro, mais uma vez mãe e filha se aproximam. Mas o silêncio agora dá lugar ao desespero perante o corpo da menina Mayara, do qual restaram apenas os pés. Da mesma forma, quando o fogo, no terceiro quadro, queima Vilma Trujillo, é difícil não pensar nas chamas que destruíram o corpo e a vida de Mayara – e que, simbolicamente, ardem sobre as mulheres na sociedade.

Há vários outros achados musicais na obra. La Malora, que integra o segundo grupo de canções, propõe uma relação diferente entre voz e piano, que não é mais acompanhamento. Entre os dois, em algumas passagens, não é preciso haver sincronia. Voz e piano se desencontram para se tocar apenas mais tarde.

Em Bruxa da Nicarágua, ao repetir de maneira angustiada a palavra fogo, ele parece nos dizer que, perante a crueldade e o calor das chamas, qualquer outra narrativa é impossível. Em Mayara Carbonizada, a citação do Estudo nº 8 para violão de Villa-Lobos e do concerto de Carulli não serve apenas para lembrar que Mayara era uma violonista: elas soam quase deslocadas, nos remetem a um universo de sonho, e ao mesmo tempo, de forma muito concreta, nos trazem de volta à realidade da mulher morta.

Parece paradoxal, mas a obra o é. Pois une poesia à morte – mas uma morte que não é idealizada, como nas palavras dos poetas de cujos versos Eli-Eri Moura extraiu os textos das canções – Cruz e Souza e Álvares de Azevedo entre eles. E é por isso que, quando sugere redenção, as últimas canções de cada quadro nos deixam em suspenso: afinal, qual a redenção possível para a mulher em um ambiente no qual sua morte é banalizada? Em especial no Brasil de hoje, não há como ignorar, em que ela assume tons de política de Estado.

A resposta vem, talvez, na última questão, baseada em texto de Fernando Pessoa. “Quando é que passará esta noite interna, o universo e eu, a minha alma, terei o meu dia? Quando despertarei de estar acordada? Não sei. O sol brilha alto, impossível de fitar. As estrelas pestanejam frio, impossíveis de contar. O coração pulsa alheio, impossível de escutar.” Não há redenção. Apenas o frio de uma voz silenciada.

Em meio à diversidade de escrita, chama a atenção a capacidade da pianista Katia Baloussier de manter o sentido narrativo, atenta a cada detalhe, mas também ao arco mais amplo que Eli-Eri Moura estabelece. E o mesmo vale para Gabriella Pace. Sua interpretação é o testemunho mais bem acabado da maturidade atingida pela soprano.

Em uma obra fortemente dramática – que Moura pensou a princípio como uma mini-ópera – Pace é capaz de encontrar a medida entre a narradora e a mulher que sofre a violência; entre distanciamento e envolvimento; entre a dor e a poesia que tenta retratá-la. E faz isso utilizando a riqueza da voz, explorando coloridos, em especial nas regiões mais graves. E isso sem abandonar o cuidado com o texto – tanto em Passionis de Flamma quanto nas canções de Schubert que encerraram o programa. Sua Gretchen am Spinnrade é uma lição de comedimento e intensidade.

Katia Baloussier e Gabriella Pace durante recital na Sala Cecília Meireles [Divulgação]
Katia Baloussier e Gabriella Pace durante recital na Sala Cecília Meireles [Divulgação]

Leia também
Notícias 
Prepare-se: quinze concertos e óperas para ver na internet
Notícias Músicos da Filarmônica de Viena são vacinados para que concertos sejam mantidos
Colunistas Canções de dor, morte e silêncio, por João Luiz Sampaio
Colunistas Pianeiros e pianistas: cultura viva, por Nelson Rubens Kunze 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.