Em seu recital no Teatro Cultura Artística, Leif Ove Andsnes realizou com perfeição o ideal do pianista imaginado por Charles Rosen: discreto, com no máximo expressões contidas no rosto, construiu interpretações que emocionaram o público.
Compartilhar a arte de um grande pianista no ápice de sua forma física e mental permanece – e sempre será -- uma ocasião rara. Um privilégio experimentado por todos que assistiram ao recital de domingo (29), do pianista Leif Ove Andsnes no Teatro Cultura Artística.
O repertório arquiconhecido – exceto a sonata de Edvard Grieg – aguçou ainda mais a expectativa de todos nós, na plateia. Cada um tem na lembrança e sempre presente a sua versão preferida do Carnaval de Schumann e dos 24 prelúdios opus 28 de Chopin.
Pois Andsnes realizou com perfeição o ideal do pianista imaginado por Charles Rosen em seu ótimo e divertido livro O Piano – anotações e vivências. Discreto, com no máximo expressões contidas no rosto, construiu interpretações que emocionaram o público. Como lembra Rosen, o pianista não precisa distribuir gestos, caras e bocas grandiloquentes para encantar o público. Como Diderot aconselhava aos atores, lembra Rosen, o pianista precisa descartar a teatralidade: “É preciso esquecer o eu consciente na música. É preciso ter passado pela experiência subjetiva de perder-se na obra antes de poder alcançar o estado objetivo que lhe permite recriar esta experiência de modo eficiente para os outros na interpretação”.
E isso só acontece quando a memória da obra torna-se involuntária, “quando teus dedos”, diz Rosen, “tocam a música para você sem nenhuma necessidade de interferência técnica da mente consciente; aí então você pode comodamente se escutar e guiar a interpretação, experimentando novos efeitos de timbres, formas mais sutis de rubato”.
É o modo ideal de o pianista permitir nosso embarque nas emoções de compartilhar viagens memoráveis como as de Andsnes pelo Carnaval e os prelúdios opus 28.
Esta foi a mágica do pianista, feito que só os grandes conseguem. Schumann desnudou-se diante de nós. Ele imagina uma noite de Carnaval coabitada por seus personagens (Eusébio, Florestan), amores (a primeira, Ernestine\Estrella, e a segunda, Clara, aqui “Chiarina”), ídolo (Chopin) e inimigos (os filisteus na marcha final dos “companheiros de Davi”).
Tudo miraculosamente construído a partir de quatro notas – lá, mi bemol, só, si, que na notação alemã correspondem a Asch, cidade natal de Ernestine.
Música de programa, encharcada de significados extramusicais, que no entanto nos apaixona mesmo que não saibamos destes detalhes. Na segunda parte, o opus 28 de Chopin completou o pêndulo estético: ambos os ciclos compostos quase simultaneamente, na década de 1830, não poderiam ser mais diferenciados entre si. Apesar de toda a carga romântica que acompanha tudo que Chopin compôs, estes prelúdios são geniais exercícios de exploração técnica do piano. Mais do que isso: uma enciclopédia sintética do piano romântico. Sei do prelúdio das gotas de chuva, etc., etc. Mas eles não têm necessidade de programa para serem amados.
Um como outro realizaram o milagre de compor música a um só tempo complexa, tecnicamente desafiadora, e ao mesmo tempo acessível a todo tipo de ouvidos.
Leif Ove Andsnes mostrou-se um pianista absolutamente dono de uma técnica irrepreensível e uma compreensão profunda do opus 28 que é, não custa acrescentar, o equivalente romântico dos 24 prelúdios e fugas de Bach, no século XVIII.
P.S.1: maravilhosa e muito orgânica em relação ao programa foi sua escolha, como segundo extra, de La Cathédrale engloutie, o décimo dos doze prelúdios do primeiro livro de Prelúdios de Claude Debussy. Seu mote é uma lenda da Bretanha. A catedral da ilha de Ys foi afundada no mar como castigo pelos pecados de sua população. Reza a lenda que há manhãs de tempo claro em que ela surge acima do mar por pouco tempo. É quando se ouvem sinos, padres cantando, e até um órgão; mas ela retorna inexoravelmente ao fundo do mar. É música programática, como a de Carnaval, de Schumann, mas matreiramente Debussy não colocava o título no frontispício da partitura, que só aparece no pé da última página da partitura. Uma gema pianística do século XX, numa leitura apaixonante de Leif Ove Andsnes. Deu vontade de assisti-lo numa integral destes prelúdios do compositor francês.
P.S.2: No Carnaval e nos Prelúdios opus 28, lembrei-me várias vezes das interpretações muito pessoais e emocionantes de Nelson Freire. Quanto à sonata de Grieg, pareceu um objeto estranho num recital com dois ciclos de maravilhosas peças curtas e absolutamente diversificadas entre si, do ponto de vista técnico e estético. Se foi um gesto de patriotismo de Andsnes, teria sido mais orgânico optar por uma seleta das deliciosas “peças líricas” do compositor.
[O pianista Leif Ove Andsnes volta a se apresentar no Teatro Cultura Artística no dia 29; veja mais detalhes aqui].
![O pianista Leif Ove Andsnes [Divulgação/Helge Hansen Montag]](/sites/default/files/inline-images/w-leif_ove_andsnes_6.jpg)
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