‘Clitemnestra’ de Marcus Siqueira é produção notável do Festival de Música Erudita do Espírito Santo

por Nelson Rubens Kunze 10/11/2024

Festival capixaba reafirma a sua ambiciosa proposta lírica, que não tem medo de investir em temáticas exigentes e na linguagem musical contemporânea

VITÓRIA (ES) – Em fins dos anos 1970, assisti, no Cine Bijou da Praça Roosevelt, ao filme Ifigenia, do diretor grego Michael Cacoyannis. É a história do sacrifício de Ifigenia, ordenado pelo próprio pai, Agamenon, em oferecimento à deusa Ártemis. Só assim os ventos soprariam em Argos, possibilitando que a esquadra grega pudesse zarpar rumo a Troia para resgatar Helena, mulher de Menelau (irmão de Agamenon), que havia fugido com Páris, príncipe troiano. O filme termina com a imagem do rosto de Clitemnestra, mãe de Ifigenia (a incrível atriz Irene Papas), com os seus longos cabelos negros desordenados pelos ventos, que finalmente sopraram. E com um olhar penetrante, de repúdio e de vingança... (o filme é bem legal, e pode ser visto na íntegra no YouTube – clique aqui para acessar).

Ifigenia tematiza um dos episódios da Guerra de Troia, contada por Homero em cerca de 900 aC e retomada por Ésquilo, nas Orestíadas, uns quinhentos anos depois. Desde sempre e até os nossos dias, a mitológica Guerra de Troia e os acontecimentos que a cercaram inspiram a humanidade. Os ânimos e os afetos que a monumental obra expõem cristalizaram-se em verdadeiros arquétipos da condição humana.

Clitemnestra, a mulher de Agamenon e mãe ressentida e vingativa de Ifigenia, é o nome da nova ópera comissionada pelo Festival de Música Erudita do Espírito Santo, que estreou na última sexta-feira, dia 8 de novembro, em Vitória. O libreto foi elaborado por Livia Sabag, diretora artística do evento, e João Luiz Sampaio, que é o curador da série de concertos de câmara (e editor executivo da Revista CONCERTO). A música é do compositor brasileiro radicado na Itália, Marcus Siqueira.

A história de Clitemnestra é a continuação do filme Ifigenia. Ela narra a volta à pátria de Agamenon, que traz como troféu da guerra a princesa troiana Cassandra. Com astúcia, Clitemnestra os recebe para no fim assassiná-los – Clitemnestra nunca aceitou que Agamenon tenha sacrificado a própria filha e também não gostou de ele ter trazido Cassandra para dentro do palácio. Mas a tragédia não termina aí. Vinte anos depois é Orestes, também filho do casal, que resolve matar a mãe Clitemnestra como vingança por ela ter assassinado seu pai Agamenon...

Na ópera, para auxiliar na compreensão do drama, os libretistas criaram dois personagens, a criada e o vigia, que contextualizam fatos pregressos. E tem Cassandra, que é a vidente e que profecia o destino trágico que se avizinha. 

A ópera começa com acordes dissonantes e um clima de terror, que é para ninguém ter dúvida do que vem pela frente. Siqueira desenvolve uma criativa malha sonora e harmônica de alta intensidade. A escrita, vazada na invenção contemporânea, tem um fluxo contínuo, é colorida e explora efeitos timbrísticos com importante participação da percussão. Em sintonia com o libreto, a música prende a atenção e delineia o arco dramático que leva primeiro ao assassinato de Agamenon e Cassandra, no fim primeiro ato, e finalmente ao derradeiro confronto de Orestes e Clitemnestra, ponto culminante da encenação. 

A direção cênica é de Menelick de Carvalho, que propôs uma ambientação de época no todo bastante sombria. Os cenários criados por Nicolas Boni mostram escombros e ruínas; três longas cortinas translúcidas, que são iluminadas de diferentes cores, pendem do teto. A iluminação é de Fábio Retti e os figurinos, de Fábio Namatame. No geral, funcionaram bem as soluções cênicas e a movimentação dos atores, com destaque para a última cena do espetáculo.

Como em anos anteriores, a montagem foi realizada no Teatro Sesc Glória, que não tem fosso e é relativamente pequeno. A orquestra ficou posicionada nas primeiras filas da plateia, em frente ao palco, com os metais nas partes laterais do piso superior e a percussão no fundo do palco. Pareceu-me a melhor solução, ainda que, em desvantagem para os cantores, o som orquestral fique bem exposto no primeiro plano – de fato, em algumas passagens especialmente fortes a orquestra encobriu um pouco as vozes.

Foi ótima a performance do elenco, no todo bem integrado e equilibrado. Gabriela Pace fez Clitemnestra, Felipe Oliveira interpretou Agamenon e Orestes. Débora Faustino fez Cassandra, acompanhada por Daniel Umbelino como vigia e Priscila Aquino como criada. Novamente os pontos culminantes foram os finais de cada ato: no primeiro, Débora Faustino cantando com grande entrega as profecias de Cassandra enquanto Clitemnestra leva a cabo os seus desígnios mortais; e, no segundo, as vigorosas interpretações de Felipe Oliveira e Gabriela Pace no encontro derradeiro de Orestes e Clitemnestra. 

Foi muito boa também a participação da Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo, conduzida por Gabriel Rhein-Schirato, que é o diretor musical da produção. Atento, com gestos largos e claros, a regência de Rhein-Schirato alcançou um excelente resultado. Não é tarefa trivial realizar a contento e com qualidade, em um teatro que não é próprio para a ópera, uma partitura exigente como a de Siqueira. 

O Festival de Música do Espírito Santo é uma realização da Coes – Companhia de Ópera do Espírito Santo, tem direção geral de Tarcísio Santório, direção executiva de Natércia Lopes, direção artística de Livia Sabag, consultoria musical de Garbiel Rhein-Schirato e curadoria dos concertos de câmara de João Luiz Sampaio. Sabag e Rhein-Schirato são também os coordenadores do Núcleo de Criação de Ópera, responsável pela criação do espetáculo.

Com Clitemnestra, o festival capixaba reafirma a sua ambiciosa proposta lírica, que não tem medo de investir em temáticas exigentes e na linguagem musical contemporânea. Um verdadeiro milagre cada vez mais raro nos dias de hoje.

A récita foi transmitida ao vivo e gravada, e pode ser assistida no YouTube (clique aqui para acessar).

[Nelson Rubens Kunze viajou à Vitória e assistiu à abertura do 12º Festival de Música Erudita do Espírito Santo a convite da Coes, Companhia de Ópera do Espírito Santo.]

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Cena de ‘Clitemnestra’, produção do Festival de Música Erudita do Espírito Santo (divulgação, Fábio Prieto)
Cena de ‘Clitemnestra’, produção do Festival de Música Erudita do Espírito Santo (divulgação, Fábio Prieto)

 

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