Obra, encomendada pela Filarmônica de Helsinque em parceria com a Filarmônica de Los Angeles, estreou na última sexta-feira, dia 10, na Finlândia
Entrar na programação de grandes orquestras internacionais é difícil para compositores contemporâneos em geral – e para autores brasileiros de qualquer época ou geração. Portanto, não há como exagerar a magnitude do feito do sorocabano Felipe Lara, de 42 anos, cujo Concerto duplo integrou a apresentação de abertura da temporada 2021/2022 da Filarmônica de Helsinque, na última sexta-feira, dia 10.
Se esse mundo interconectado tem alguma vantagem, é a de podermos assistir à História em tempo real. Sobre as estreias de óperas de Carlos Gomes na Itália, ou as apresentações de Villa-Lobos em Paris, só podemos ler. Já a apresentação do Concerto duplo de Lara pode ser vista e revista. O link do YouTube em que acompanhei a récita de sexta-feira foi tirado do ar, mas o vídeo continuará ativo na página da orquestra finlandesa por mais um mês (veja aqui).
Leitores mais atentos da Revista CONCERTO já estão habituados a acompanhar as proezas deste paulista cuja paixão pelo rock levou-o a se radicar nos EUA em 1999, como aluno do Berklee College of Music. Em solo ianque, veio a descoberta da música de concerto; além de uma sólida carreira de professor, Lara começou a atrair encomendas de grupos de referência internacional, como o Quarteto Arditti e o Ensemble InterContemporain, até que veio este Concerto duplo, escrito conjuntamente para as filarmônicas de Helsinque e de Los Angeles.
Na edição de setembro de 2019 da Revista CONCERTO, em entrevista focada na estreia, na Sala São Paulo, pela Osesp, de Nó, sobre texto de Nuno Ramos, ele falou do Concerto duplo:
“Pois é, essa é a aventura em que estou mergulhando no momento. Um concerto duplo para a flautista Claire Chase, a cantora/contrabaixista Esperanza Spalding e grande orquestra. É uma encomenda das filarmônicas de Helsinque e de Los Angeles e um par de outras orquestras que ainda não posso anunciar. Quem vai reger ambas as orquestras é a maestrina finlandesa Susanna Mälkki. Ou seja, um time dos sonhos; realmente, a pressão agora está em meus ombros. Eu trabalho com Claire desde 2006, conheço Esperanza há mais ou menos o mesmo tempo; lá por 2014 propus escrever um duo para as duas, que toparam. Mas, papo vai, papo vem, o projeto cresceu e foi tomando forma, quando a Susanna propôs uma obra realçando as duas com orquestra. Minha ideia inicial foi tratar e fundir as duas solistas e seus timbres como um solista composto, uma espécie de hidra que canta, toca contrabaixo, flautas em dó, flauta glissando e flauta contrabaixo, em diferentes combinações e momentos. Contudo, a ideia principal foi reinterpretar o gênero do concerto duplo, propondo uma obra que explora aspectos de música oral, improvisada, música de concerto, diferentes formas da canção em diferentes línguas. O desafio que me coloquei foi negociar várias vertentes musicais que me formaram, de música popular, rock, jazz e música de concerto, sob o olhar/a escuta do presente, além do êxtase de desafiar incríveis colaboradoras com situações musicais que nenhum de nós envolvidos jamais habitamos.”
A peça deveria ter sido estreada em março de 2020, mas veio a pandemia. Acabou caindo no concerto de reencontro da Filarmônica de Helsinque com seu público após 18 meses de separação – uma oportunidade para lá de festiva, em um programa aberto pelas Danças eslavas Op. 46, de Dvorák, na semana em que o compositor tcheco completou 180 anos (efeméride que as orquestras brasileiras preferiram ignorar).
Infelizmente, ainda não há tecnologia que dê conta de reproduzir a miraculosa acústica do Musiikkitalo, de Helsinque – uma das mais deslumbrantes do planeta, que reconfigura o paradigma de excelência sonora do ouvinte (sim, vale a pena dar um pulo na Finlândia só para conhecê-la). Mas a qualidade da transmissão, de qualquer forma, é soberba, e traz, além do concerto, entrevistas gravadas com a regente (em finlandês!), as solistas e Felipe Lara (felizmente, em inglês), além de uma breve conversa entre Mälkki e Lara, no palco, em inglês, pouco antes da apresentação da peça.
Uma peça chamada Concerto duplo talvez evoque associações neoclássicas, assim como um compositor brasileiro com origem na música popular talvez desperte expectativas de uma obra tonal e melódica, pontuada por ritmos de dança “exóticos”. Nada mais distante do universo poético de Lara do que isso. Seu liquidificador sonoro funde diversas referências históricas e estéticas para criar um mundo de identidade e riqueza única.
Flauta e contrabaixo está longe de ser a mais óbvia das combinações instrumentais, e cada um desses instrumentos é ressignificado de forma decisiva por Chase e Spalding. A primeira mobiliza um verdadeiro arsenal de flautas, enquanto a segunda, muito apreciada por quem acompanha o circuito de jazz, alia a destreza ao instrumento a um virtuosismo vocal que o compositor não se cansa de explorar. É na relação entre o escrito e o improvisado (que vai muito além da ambiciosa cadenza da peça) que Lara tensiona os limites entre “erudito” e “popular”.
Com meia hora de duração, o Concerto duplo mostra seu fôlego não apenas no virtuosismo das solistas, como na originalidade da escrita orquestral. Lara divide a orquestra em duas, afinadas com um quarto de tom de diferença, e joga o tempo todo com a oposição entre sonoridades “cheias” e camerísticas, produzindo momentos feéricos. Representante da gloriosa escola finlandesa de regência, Mälkki mergulha na complexa linguagem do compositor brasileiro com o prazer e convicção que a partitura merece.
Em uma época em que o Brasil virou uma espécie de pária internacional, em que gente de todo o planeta resiste em vir para cá, e em que nosso passaporte é encarado com desconfiança por toda parte, não deixa de ser um alento ver um brasileiro brilhando internacionalmente, e na arte que sempre foi a que mais nos distinguiu – a música. Felipe Lara, você me representa!
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Revista CONCERTO Texto em forma de música: em conversa com Felipe Lara, por Irineu Franco Perpetuo [edição de setembro de 2019]
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