Criatividade e abnegação

O Brasil nunca foi para amadores, porém, mesmo para nossos padrões, poucos profissionais possuem tanta vivência em driblar adversidades como os que trabalham no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Mesmo antes da pandemia, cada espetáculo da mais bela e tradicional casa de ópera do Brasil era um pequeno milagre de resiliência, de vitória da obstinação sobre as precariedades das condições materiais.

Agora que a Covid-19 impede o acesso presencial a uma das joias arquitetônicas da Cidade Maravilhosa, a internet permite que as produções urdidas na Cinelândia viajem por todo o planeta. E a criatividade do maestro Ira Levin, diretor artístico do teatro, ao lado da abnegação inquestionável de seus corpos artísticos, possibilita que o Municipal celebre seus 112 anos, se não com euforia, pelo menos com orgulho, e de cabeça erguida.

Há uma semana, a casa colocou no ar o que chamou de Ópera de Câmara Série Vozes Femininas. Trata-se, na verdade, de duas cantatas do século XVIII, monólogos femininos cantados em italiano e acompanhados de pequeno grupo instrumental, com cerca de 20 minutos de duração cada: Armida Abbandonata, de Händel, e Arianna a Naxos, de Haydn.

 

As “vozes femininas” não são apenas as das cantoras: ambas as produções têm direção musical de Priscila Bomfim, pianista e regente assistente da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e cênica de Julianna Santos.

A escolha das obras foi bastante feliz. Afinal, trata-se de peças que não precisam de “arranjos” ou “adaptações” para funcionarem nas condições especiais impostas pela pandemia. Foram escritas por autores importantes, mas que são pouco executados em nosso país. E demandam vozes possíveis de serem encontradas em nossas terras.

Embora os espetáculos estejam disponíveis em links separados, seria de se aconselhar que quem resolver assistir a ambos dedique-se primeiro à cantata de Händel, e depois à de Haydn. Não apenas pela questão cronológica (a peça do mestre do Barroco é de 1707, enquanto à do compositor do Classicismo é oito décadas posterior), mas porque parece haver uma curva de crescimento que leva dos sofrimentos da feiticeira muçulmana Armida, largada pelo cavaleiro cristão Rinaldo, que parte para as Cruzadas (o tema, inspirado em episódio do poema épico Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, seria novamente abordado por Händel em sua ópera Rinaldo) ao padecer, na ilha de Naxos, de Ariadne, abandonada por Teseu após o heroi derrotar o Minotauro com sua ajuda.

 

Com uma concepção cênica unificada, em que simplicidade e despojamento não são sinônimos de pobreza, Santos colocou ambas as heroínas em cenários simples, com poucos elementos (Armida empunha um punhal; Ariadne, o novelo com que auxiliou Teseu), centrando forças em uma direção de atrizes objetiva e eficaz. Se a soprano Ludmila Bauerfeldt foi uma Armida adequadamente intensa, constituiu prazer especial acompanhar as gradações de sentimento com que a mezzo Luisa Francesconi soube colorir sua Ariadne. Francesconi começou a carreira com uma voz leve, que se desincumbia com incrível facilidade das ornamentações da escrita setecentista e do bel canto. Com os anos, sua vocalidade orientou-se na direção de partes mais pesadas, mas é gratificante vê-la retornar a um estilo no qual ainda tem bastante a dizer. Já Bomfim teve uma direção musical sóbria e segura, acompanhando as cantoras com afeto e marcando as diferenças estilísticas entre as peças.

No dia exato de seu aniversário, 14 de julho, o Municipal colocou no ar um vídeo em que Ira Levin, ao piano, executa o Quinteto nº 2 de Dvorák, ao lado do Quarteto Atlas (Ricardo Amado e Carlos Mendes, violino; José Ricardo Taboada, viola; Ricardo Santoro, violoncelo). 

 

Pode não ser a mais apolínea ou imaculada das interpretações desta obra; mas está eivada de calor, musicalidade e senso de estilo. Dá vontade de cantar junto com as ricas melodias do compositor tcheco, e até de ensaiar alguns passos em seus movimentos de dança (uma das vantagens de se assistir à performance na privacidade do lar, sem testemunhas). 

Parabéns, Theatro Municipal do Rio de Janeiro!

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Luisa Francesconi em cena de 'Arianna em Naxos' [Divulgação/Lipe Portinho]
Luisa Francesconi em cena de 'Arianna em Naxos' [Divulgação/Lipe Portinho]

 

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