Daniil Trífonov deixa a Sala São Paulo em estado de transe

Quando uma mente de criatividade caleidoscópica tem uma musculatura ágil e azeitada à disposição para materializar seus variegados desígnios, o resultado é puro deslumbramento. No recital de terça-feira, dia 2, na Sala São Paulo, na série do Mozarteum Brasileiro, o russo Daniil Trífonov (pronúncia proparoxítona) comprovou, aos 33 anos, ser um dos mais fascinantes astros do teclado em atividade.

Mais adequado do que falar do “som” de Trífonov seria utilizar a palavra no plural. Pois não se trata de um daqueles pianistas que possuem uma única maneira de tocar, e tentam ajustar todo repertório a este leito de Procusto. Pelo contrário: temos um Proteu que se esbalda em assumir as mais diversas variedades, e que não apenas adota um som para cada compositor, como possui a rara capacidade de caracterizar de maneira muito distinta cada seção de cada peça. Foi o que fez tão especial sua apresentação paulistana anterior, no já longínquo 2013, com a Osesp, colorindo individualmente cada uma das variações da Rapsódia sobre um Tema de Paganini, de Rachmaninov. E o que se ouviu com grau extra de amadurecimento no recital de agora.

Assim, para um compositor bastante anterior ao piano moderno, o francês Jean-Philippe Rameau (1683-1784), com sua Suíte em lá menor RCT 5, Trífonov privilegiou uma leitura ligeira e diáfana, esculpindo cada ornamento com refinamento de ourives e mantendo, através da fluência, o caráter de dança que perpassa a obra, culminando gloriosamente com a Gavotte et six doubles (gavota com seis variações).

Outro compositor, outro mundo sonoro: a Sonata K. 332 apresentou-nos um Mozart elegante e cristalino, com inteligência agógica e uma escolha de tempos rápidos que, contudo, jamais prejudicou o lirismo: o Adagio cantou com a elegância das melhores árias de ópera mozartianas.

Em seguida, veio o ponto alto desta primeira parte da apresentação: Rachmaninov, mas em um item menos tocado – as Variações sobre um Tema de Corelli. Após emigrar da Rússia em consequência da Revolução de 1917, Rachmaninov concentrou-se mais na carreira de pianista, e diminuiu drasticamente a quantidade de composições. Datadas de 1931, as Variações pertencem – assim como a Rapsódia sobre um Tema de Paganini, de 1934 – a essa seconda prattica do compositor, de escrita e retórica mais contidas com relação à fase anterior.

A rigor, o tema a partir do qual as variações são construídas não é do barroco italiano Arcangelo Corelli (1653-1713), mas sim a célebre La Follia, de autoria anônima, que galvanizou a imaginação de diversos compositores ao longo dos séculos. Pois bem: Trífonov revestiu a escrita de Rachmaninov com a sonora gloriosidade da escola russa, revelando novidades a cada uma das variações, com uma leitura que conseguiu ser original sem jamais flertar com maneirismo ou afetação.

Se o recital tivesse parado por aí, já teríamos uma noite plenamente satisfatória. Mas havia ainda, na segunda parte, o monumento beethoveniano chamado Hammerklavier.

O pianista parece ter se isolado da azáfama da vida moderna para investigar os recônditos da alma de Beethoven e trazer a público os resultados dessa pesquisa espiritual

Mesmo os mais fanáticos pianistas, pianeiros e pianólatras presentes à Sala São Paulo tinham que puxar pela memória para se lembrarem das ocasiões em que ouviram a Sonata Op. 106 de Beethoven ao vivo. Afinal, trata-se de uma sonata que aspira à grandiosidade da sinfonia, porém com a intricada metafísica dos últimos quartetos de cordas do compositor – o Beethoven tardio no que há de mais estimulante e desafiador. Luca Chiantore, em seu livro Historia de la técnica pianística, chama a obra de “utópica”, com suas “dimensões ciclópicas e sua escritura aparentemente afastada de qualquer condicionamento manual”, para concluir que a sonata “parece um último e desesperado desafio à materialidade, uma ‘materialidade’ representada não só pelo instrumento, com suas leis e imperfeições, senão, sobretudo, pelos limites físicos e intelectuais do intérprete”.

Mas o que fazer quando o intérprete transcende esses limites? Quando escala o Himalaia com a facilidade de quem utiliza um elevador panorâmico, sem trair qualquer tensão física na realização das mais espantosas proezas atléticas? Quando mantém sob pleno controle todos os parâmetros musicais sem contudo jamais recair em frieza e artificialidade? Quando a perfeição técnica parece ter banido erro ou esbarro para a terra da improbabilidade?

No palco, a figura de Trífonov evoca os anacoretas da literatura russa do século XIX – como o stáriets Zossima, de Os Irmãos Karamázov, ou o protagonista de O Padre Sérgio, de Tolstói. A imagem adquire especial pertinência no Adagio sostenuto – que, em entrevista à Revista CONCERTO, Trífonov afirma ser o maior desafio da sonata inteira. Ali, o pianista parece ter se isolado da azáfama da vida moderna para investigar os recônditos da alma de Beethoven e trazer a público os resultados dessa pesquisa espiritual. Depois desse momento que deixou a Sala São Paulo em estado próximo ao transe, Trífonov achou o fio de Ariadne para guiar os ouvintes pelo sinuoso labirinto da fuga do último movimento, demonstrando prodigiosa inteligência contrapontística.

Em uma apresentação fora do comum, o bis também teria que ser raro. Trífonov evocou a atmosfera sinestésica da Era de Prata com o Andante da terceira sonata de Scriabin, para fechar com o humor da Gavotte de Cinderela, de Prokófiev. Verve e bom gosto maior não pode haver.

O pianista Daniil Trifonov [Divulgação]
O pianista Daniil Trifonov [Divulgação]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.