Duas noites de canto e de ópera

por João Luiz Sampaio 26/08/2019

O Coro Lírico Municipal de São Paulo comemorou seus 80 anos no final de semana, com um espetáculo no Theatro Municipal de São Paulo, Ensaio sobre o lírico, dirigido por Nelson Baskerville e regido pelo maestro Alessandro Sangiorgi.

Na entrada do público, o coro já estava no palco – como se os cantores aguardassem na coxia o início da apresentação. Há uma tentativa de revelar, com o palco aberto, algo dos bastidores, do que acontece lá atrás durante uma apresentação de ópera. E tornar visível o que está escondido é, de certa forma, a tônica do espetáculo

A ideia se concretiza com as projeções de desenhos do diretor que indicam as próprias marcações de cena imaginadas para a produção; com o cenário feito de estantes musicais, cadeiras e outros objetos do cotidiano de ensaios e de antigas produções do Municipal; ou então evocando as placas acústicas instaladas na cúpula do Municipal, onde o coro tradicionalmente ensaia.

Mas a ideia atinge seu ponto mais evidente na tentativa de fazer do coro protagonista, não apenas como conjunto, revelando, um a um, seus integrantes: durante o Intermezzo da Cavalleria rusticana, um dos trechos orquestrais da noite, os cantores seguem em procissão, com uma câmera captando e transmitindo suas imagens no telão; e, durante o coro Va pensiero, do Nabucco, de Verdi, um pequeno filme foi exibido, trazendo informações sobre todos os membros do grupo (ao piano, o maestro Mario Zaccaro recebeu homenagem do coro e da orquestra ao interpretar uma obra de sua autoria, A passagem).

O Lírico interpretou trechos de óperas célebres, como Turandot, La traviata, Tannhäuser, Macbeth, e de peças corais-sinfônicas, como os réquiens de Verdi e Mozart e Carmina burana, de Carl Orff. O caráter fragmentado justifica-se: a ideia parecia ser mostrar a versatilidade conquistada nesses 80 anos de história, também evocada nos figurinos, com cada cantor utilizando roupas de montagens diferentes das quais o grupo participou ao longo do tempo.

O momento mais tocante da noite foi a singela homenagem a antigos integrantes do coro, já aposentados. Na cena da festa da Traviata, o barítono Luiz Orefice e a mezzo soprano Elisa Nemeth, cada um com mais de 30 anos de grupo, cantaram o breve dueto entre Flora e o marquês. E, na cena final da Turandot, a soprano Ivete Montoto foi levada pelos colegas à frente do palco para interpretar as falas da protagonista.

Talvez exista aí uma certa contradição, como se a melhor forma de homenagear um cantor do coro seja transformá-lo em solista. Mas não importa. O olhar de D. Ivete, entre nervosismo e orgulho, contemplando a plateia, pareceu no sábado o momento mais delicado, tocante e arrepiante da noite. E ainda parece.


No domingo, mais ópera – em um contexto totalmente diferente. No Theatro São Pedro, em espetáculo da Cia. Ópera São Paulo, a Sinfônica de Santo André apresentou ao lado da soprano italiana Maria Pia Piscitelli o concerto Trilogia Tudor, com a abertura e as cenas finais das óperas Anna Bolenna, Maria Stuarda e Roberto Devereux, de Donizetti.

As três rainhas se aproximam: todas elas pertenceram à casa Tudor, assim como tiveram destinos marcados por tragédias pessoais. Mas Donizetti não imaginou suas óperas como uma trilogia e, de fato, há entre elas diferenças marcantes, que talvez tenham a ver com o modo como suas personagens encaram o drama que enfrentam.

Bolenna aceita a morte, mas de maneira urgente e altiva; Maria Stuarda, enquanto abraça seu destino, já parece ligada ao mundo do lado de lá, imaginando-se ao lado de Deus pedindo perdão por aqueles que a condenaram. Elisabeth I, por sua vez, é toda fúria, ainda crente na possibilidade de transformar o próprio destino.

A capacidade de Piscitelli de estabelecer uma diferente vocalidade para cada uma das personagens, em uma riqueza de nuances que se estende para o gesto e a expressão, impressiona – assim como o controle da voz, mesmo em passagens nas quais a coloratura parece coloca-la em seu limite. Uma aula de teatro. E, entre tantos grandes momentos, acompanhados com segurança pelo maestro Abel Rocha (as aberturas foram regidas pela maestrina Natália Larangeiras), na noite de domingo, foi difícil tirar da mente o “Deh! Tu di un umile preghiera” da Maria Stuarda. Continua sendo. 

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Em tempo: Maria Pia Piscitelli repete o programa dedicado à Trilogia Tudor no sábado, dia 31, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob regência de Ira Levin; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO.

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Ensaio sobre o Lírico [Divulgação]
Ensaio sobre o Lírico [Divulgação]

 

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