Em nova fase, Theatro Municipal do Rio de Janeiro estreou ‘Don Giovanni’

por Nelson Rubens Kunze 25/07/2022

Se a encenação, ainda que simples, é bonita e funcional, a parte musical apresentou irregularidades; produção, que teve grande aprovação do público, comemorou os 113 anos do teatro

Há muitos anos, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro vive de fase em fase, algumas melhores, outras piores, todas com a promessa de recomeço e reconstrução. As fases se sucedem ao humor das conjunturas políticas. 

A nova fase, liderada pela presidente Clara Paulino e pelo diretor artístico Eric Herrero, tem conquistado alguns importantes avanços. Em primeiro lugar, a contratação, ainda que temporária, de músicos para completar a até então desfalcada orquestra. Em segundo lugar, um grande esforço para restabelecer uma convivência harmoniosa entre a direção e os corpos artísticos da casa, propiciando um bom ambiente de trabalho.

A primeira encenação completa desta nova fase, a primeira também desde a eclosão da pandemia, é um Don Giovanni, de Mozart, que também comemora os 113 anos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A direção cênica é de André Heller-Lopes (ex-diretor artístico da casa) e a direção musical e regência de Tobias Volkmann (ex-regente titular da Sinfônica Municipal).

A ópera Don Giovanni, estreada em 1789, faz parte, com As bodas de Figaro e Così fan tutte, da tríade lírica criada por Mozart com o libretista Lorenzo da Ponte. A partitura leva o subtítulo dramma giocoso, uma contradição de termos que já de início expõe a característica ambígua da narrativa. Como se sabe, Don Giovanni é baseado no arquétipo do sedutor, colocado em texto teatral em Dom Juan, por Moliere, em 1665, portanto um século antes de Mozart. No libreto de Da Ponte, personagens cômicos – Leporelo, Zerlina, Masetto – contracenam com personagens sérios – o Comendador, Donna Anna, Don Ottavio, Donna Elvira –, manipulados pelo esperto e carismático sedutor Don Giovanni. Em “A ópera alemã”, o crítico Lauro Machado Coelho escreve: “O tentador é demoníaco menos pela sua própria busca amoral do prazer do que pela inquietação que desperta nos outros, forçando-os a tomar consciência de seus próprios desejos reprimidos”. Lauro lembra também que já se disse que a figura ambígua de Don Giovanni configura a primeira aparição do inconsciente no teatro.

Na matéria de Irineu Franco Perpetuo publicada na edição de julho da Revista CONCERTO, o diretor cênico André Heller-Lopes afirma: “Depois da pandemia e de tudo que passamos, não consigo mais ver o lado sedutor de Don Giovanni. Ele não tem nada de jocoso na atitude. É um personagem de masculinidade tóxica e que todos vão perdoando. Veja: ele começa a ópera tentando estuprar Donna Anna. Acabou de enganar e, ao que parece, engravidar Donna Elvira. Tenta arruinar o casamento de Zerlina. Mata o Comendador e abusa de Leporello o tempo todo”. Faz sentido. Em um país em que casos de misoginia e abuso são tratados como trivialidades do cotidiano, Heller-Lopes quer realçar o lado criminoso, destruidor e tóxico desses comportamentos. “Os personagens estarão em um purgatório. O título completo da ópera é Don Giovanni ossia il dissoluto punito (Don Giovanni, ou seja, o dissoluto punido). O dissoluto será realmente punido.”

A encenação é simples, mas funcional e de bom gosto (cenografia de Renato Theobaldo, luz de Fabio Retti e figurinos de Marcelo Marques). Grandes cortinas estampadas com motivos da catedral da cidade de Sevilha, onde se passa a ação, descem sobre o palco para, com o apoio da iluminação, criar os diferentes espaços teatrais. Heller-Lopes se aproveita também da transparência das cortinas, com efeitos de luz e sombra, configurando bonitas cenas. Ponto culminante da encenação é a punição final de Don Giovanni, em que um grande canudo vermelho envolve o sedutor, que então é tragado pelo fogo.

No elenco, destacou-se o baixo barítono Homero Pérez-Miranda, que fez Don Giovanni com naturalidade cênica e uma bela voz, equilibrada em todos os registros. Igualmente bem foi a soprano Ludmila Bauerfeldt no exigente papel de Donna Anna. Bauerfeldt tem uma voz bem timbrada e sonora e teve atuação muito convincente. 

Leporello foi interpretado com competência pelo barítono Homero Velho. Homero alia uma excelente presença cênica com um sólido desempenho vocal. A camponesa Zerlina foi feita pela estreante Sophia Dornellas, com ótimo resultado cênico e vocal (os momentos mais emocionantes da récita foram protagonizados, em solos ou duetos, por Pérez-Miranda, Bauerfeldt e Dornellas). Seu noivo Masetto foi bem realizado pelo baixo Murilo Neves, assim como o Comendador do baixo Pedro Olivero.

O tenor Fernando Portari cantou Don Ottavio, noivo de Donna Anna. Portari estreou no Municipal carioca com este mesmo papel, há 31 anos. Desde então, com o natural amadurecimento vocal, Portari mudou de repertório e ultimamente tem cantado papeis mais pesados, especialmente óperas românticas e do século XX (The Rake´s Progress e Peter Grimes, por exemplo). Assim, acabou tendo dificuldades nas coloraturas e no estilo límpido do classicismo mozartiano.

Donna Elvira foi interpretada por Claudia Riccitelli. A soprano nunca se destacou por uma voz de grande potência, mas sempre ofereceu interpretações consistentes e de qualidade. Porém, nesta récita de Don Giovanni que assisti (dia 24/07), apesar de boa atuação cênica, Riccitelli enfrentou desafios vocais, especialmente nos registros médio e grave.

Finalmente, a orquestra. Após uma boa abertura, em que soou bem e foi conduzida com verve pelo maestro Tobias Volkmann, a orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, quiçá pelo recesso de dois anos motivado pela pandemia, ou talvez também por ter recentemente admitido muitos integrantes novos, por vezes esteve desequilibrada e, em algumas passagens, desencontrada com as vozes da cena. A música de Mozart, com sua fluência e refinamento clássicos, exige atenção às dinâmicas e às articulações do conjunto. Quero destacar, contudo, o competente acompanhamento dos recitativos feito pelo cravista Eduardo Antonello.

Se houve problemas, eles ao que parece não afetaram a recepção da ópera pelo público, que lotou o teatro e aplaudiu com grande entusiasmo. 

Aproveitando o aniversário e o clima de festa que tomou a casa, quero renovar os meus desejos de que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro consiga finalmente implantar uma moderna estrutura de gestão, que lhe permita construir um projeto artístico de longo prazo. O maior e mais tradicional palco lírico do país merece!

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Cena do ‘Don Giovanni’ do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Renato Theobaldo)
Cena do ‘Don Giovanni’ do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Renato Theobaldo)

 

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