Enrique Graf é uruguaio, mora nos Estados Unidos, e está em viagem pelo Brasil. No sábado, dia 9, apresentou-se na Sala Watari.
Pianista de qualidades excepcionais, ele se destaca justamente por não ser o virtuose típico, aquele que parece jogar luzes sobre si a cada nota, vaidosamente. A primeira qualidade que senti foi sua fluência tranquila, um traço que não denota ausência de intensidade, paixão, nem tampouco apatia, mas antes um domínio sereno das partituras e de cada obstáculo que elas oferecem. Cada gesto é preciso, sem pressa ou ostentação, dentro da melhor naturalidade. Ele demonstra que a música não é apenas uma sequência de notas a serem tocadas com perfeição técnica, mas um espaço de entrega e de escuta, onde a calma é a chave para acessar a profundidade da obra.
O programa se iniciou com a Sonata em dó maior, K. 545, de Mozart. Imediatamente sentia-se que Graf estava em casa, à vontade no universo delicado de Mozart, obtendo finíssimas nuanças em cada frase para essa composição falsamente simples. Por mais conhecida que seja a peça, nas mãos de Graf, ela ganhou leveza e transparência, como se fosse redescoberta. Sua interpretação iluminava passagens escondidas, despontando detalhes que faziam a composição soar fresca, inesperada, como uma conversa íntima entre o intérprete e a música.
Em seguida, Graf teve a excelente ideia de revelar ao público alguns compositores uruguaios, e um argentino, pouco divulgados no Brasil. Uma Sonatina de Eduardo Gilardon (1935–1922), uruguaio, completamente desconhecido na internet e não arrolado pelo Grove, deliciosa, inspirada, delicadamente dissonante; uma milonga do argentino Mariano Mores (1918-1916), este, ao contrário, muito conhecido por sua incursão na música popular, autor dos tangos Uno, Adiós Pampa Mia, entre outros. A milonga Taquito militar, interpretada por Graf, simbolizou um projeto de fusão entre o “culto” e o “popular”, na época encabeçado pelo próprio Perón, que fez o Teatro Colón abrir suas portas para Mores. Com uma estrutura rítmica marcada e verve vibrante, Taquito Militar apresenta uma intensidade séria, que reflete a busca de construir uma identidade cultural nacional.
Seguiu-se uma obra de juventude composta por Eduardo Fabini (1882-1950), glória musical do Uruguai: o Estudio Arpegiado. A primeira parte do recital se concluiu com a Danza Criolla, de Héctor Tosar (1923-2002) que, como Camargo Guarnieri, foi aluno de Lamberto Baldi; a obra, enérgica, admiravelmente construída, também se volta para raízes populares e nacionais.
A segunda parte do programa foi consagrada à Sonata em si menor, de Franz Liszt. Essa obra monumental, cósmica, transbordante, exige atenção estrita à continuidade de seu percurso. Graf expunha os temas em todas as suas variedades afetivas sem perder a clareza, destacando os contrastes dinâmicos e expressivos sem nunca os forçar. Ele não perdia nunca a naturalidade do canto e da respiração, tecendo essa imensa tapeçaria sonora sem se deixar asfixiar por ela.
Liszt fez de seu piano uma orquestra, e quantos intérpretes se deixam levar pela ideia que essa orquestra é apenas um pedestal para o virtuosismo baseado em efeitos imediatos. Graf é o contrário de tudo isso; compreende exatamente o que o piano pode oferecer. Raramente se ouve uma fusão tão perfeita, tão orgânica, uma osmose tão completa entre intérprete e piano, como a que Graf nos concedeu ali na Sala Watari. No fim dos bons 30 minutos que essa sonata em um movimento exige, o público ficou em suspenso, não ousando aplaudir. Foi preciso um momento para que os espíritos de todos aterrissassem, e os aplausos se desencadeassem em enorme entusiasmo. Eduardo Graf gravou essa sonata de Liszt, que está disponível no Spotify.
Ele concluiu o programa com um bis, a delicada composição de Monpou, Muchachas en el jardin.
[Em sua passagem pelo Brasil, Enrique Graf se apresenta nesta quinta, dia 21, em Brasília; com a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, sob a direção de Claudio Cohen, ele vai tocar o Concerto em fá de Gershwin.]
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