Entre passado e futuro, o Balé da Cidade de São Paulo põe à prova sua própria identidade artística em novo espetáculo

por Amanda Queirós 18/03/2025

Com Réquiem SP, o diretor artístico e coreógrafo Alejandro Ahmed provoca uma reflexão sobre a necessidade de renovação para dar conta de uma vida que, tal como sugere Shakespeare, parece cada vez mais cheia de som e fúria

É difícil falar de morte sem falar de vida. Que o diga Alejandro Ahmed, coreógrafo da mais nova obra do Balé da Cidade de São Paulo (BCSP), estreada no último fim de semana no Theatro Municipal da capital paulista. Como o nome sugere, Réquiem SP é uma peça sobre o fim. Mas, na visão do criador, o “descanso” sugerido por esse estado surge em doses cavalares de movimento, sons e excessos. 

Desde julho de 2023, Ahmed é diretor artístico da companhia. De lá para cá, vem conduzindo uma mudança de rota significativa no conjunto. Suas escolhas curatoriais estão focadas em coreógrafos de vanguarda, com trabalhos arriscados e de caráter mais experimental. Anunciada com entusiasmo pelo Theatro Municipal, a montagem de Réquiem SP sedimenta esse caminho ao mesmo tempo em que coloca os 57 anos de história do BCSP em uma encruzilhada.

Ahmed é um dos mais importantes coreógrafos brasileiros. Há três décadas à frente do Grupo Cena 11, ele conseguiu desenvolver o que muitos artistas buscam, mas nem todos conseguem: uma linguagem completamente original, marcada por uma disponibilidade física quase devocional dos intérpretes, o uso de tecnologia como parte indissociável do corpo e um treinamento de quedas que materializam a gravidade de modo brutal, ecoando inevitavelmente em quem assiste. 

Intercalados a tons graves e uma polifonia de ares fantasmagóricos, os agudos com toques recitativos da soprano Gabriela Geluda e da mezzo soprano Laiana Oliveira soam como gritos de desespero

Réquiem SP potencializa tudo isso ao se valer da máquina do Theatro Municipal para criar algo grandioso, à altura do caráter emblemático do lugar. Na primeira parte, sob a regência de Maíra Ferreira, a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coral Paulistano interpretam o Réquiem, do húngaro György Ligeti (1923-2006). Tão estranha e fascinante quanto difícil de interpretar, a peça raramente se faz presente nas temporadas de música clássica no Brasil, mas injeta à cena uma densidade que, em diálogo com os 16 bailarinos, se torna eletrizante.

Intercalados a tons graves e uma polifonia de ares fantasmagóricos, os agudos com toques recitativos da soprano Gabriela Geluda e da mezzo soprano Laiana Oliveira soam como gritos de desespero. Em vez da legenda tradicional, posicionada acima da caixa cênica, ela é recriada de forma fonética e projetada em um telão no fundo do palco, no qual as sílabas aparecem e desaparecem em múltiplos, criando desenhos.   

Em meio a essa paisagem sonora de horror, pequenos grupos de bailarinos se fixam, cada um, na repetição de algumas poucas partituras de movimento independentes uns dos outros. Elas são carregadas de técnicas diversas, que vão de balé, house e vogue às próprias quedas do Cena 11. Como o assunto é morte, cabem aqui referências simbólicas, como a cena do clássico romântico Giselle na qual a camponesa se transforma em uma Willi – como são chamados os espíritos de jovens que perderam a vida antes do casamento. 

Na ausência de uma base melódica facilmente reconhecível, a contagem da pulsação – marcada no telão, durante os silêncios, ou pelo som amplificado da queda de gotas de água – garante uníssonos improváveis, remontando a um tipo de dança que o público se acostumou a ver com o Balé da Cidade.

Sob a direção de fotografia de João Peralta, câmeras também tomam conta do palco e projetam em tempo real ângulos aos quais o público não acessa da poltrona, ampliando as formas produzidas pelos corpos dos bailarinos ou recortando detalhes das solistas do coro. Em certo momento, a lente se fixa no rosto da bailarina Ariany Dâmaso em um samba frenético e desajeitado. De olhos fechados, como que enfeitiçada pelo encanto dos sapatinhos vermelhos, ela mantém o ritmo por longos minutos até suas feições começarem a se contorcer. Ela chora. A dança continua. 

De repente, um cheiro de combustível queimado toma conta da sala. Na porta principal de acesso à sala, uma moto se prepara para percorrer o corredor e subir no palco. É um corpo estranho em meio a um patrimônio tombado, mas sua presença materializa de forma muito eficaz a ruptura proposta pelo coreógrafo

Durante todo o primeiro ato, Ahmed faz uma hábil costura entre bailarinos, cantores, músicos, câmeras e luzes para conduzir o público em uma overdose de estímulos que, no fundo, mascaram um certo esvaziamento do que eles próprios estão a fazer. Disso, surgem muitas perguntas. Por que aquelas pessoas fazem o que fazem? O que as faz continuar? Vale a pena insistir naquilo a qualquer custo? Quando é hora de dar adeus? O luto dá seu tom. 

A esta altura, os incomodados não podem se retirar. Com fitas zebradas em amarelo e preto, dois bombeiros bloqueiam a saída pelo corredor central da plateia para que o coro saia por lá. Enquanto isso, técnicos ocupam o palco e o preparam para o próximo ato, substituindo o linóleo preto pelo branco, uma sinalização da virada de chave de logo mais.

De repente, um cheiro de combustível queimado toma conta da sala. Na porta principal de acesso à sala, uma moto se prepara para percorrer o corredor e subir no palco. É um corpo estranho em meio a um patrimônio tombado, mas sua presença materializa de forma muito eficaz a ruptura proposta pelo coreógrafo. 

O piloto realiza algumas acrobacias sobre uma roda só, e a plateia grita em aprovação. Ali a quarta parede se quebra às avessas. O público - até então obediente à introspecção solene costumeiramente pedida por um réquiem – se sente autorizado a interferir na cena, mudando sua relação com o que vê. 

Essa postura ativa se repete ao longo do segundo ato, em especial diante da atuação da bailarina convidada Bill Valkyrie. Integrante do Grupo de Rua de Niterói, ela é especialista em krump, uma linguagem das danças urbanas marcada por movimentos enérgicos e precisos que, executados de forma muito rápida e vigorosa, são por vezes percebidos como toques de agressividade. 

Enquanto todo o elenco veste preto, em figurinos assinados por Karin Serafin, Bill é a única trajada de branco. Sob um véu, como um anjo da morte, ela catalisa a transformação do último ato. Partindo de um dueto com o contrabaixista Vinicius Frate, a artista conduz toda a movimentação, embalada por faixas do músico eletrônico canadense Venetian Snares. 

Bill esbanja virtuosismo. Com excelência e frescor, sua performance puxa os bailarinos no retorno ao palco após o intervalo. Eles emulam trechos dos movimentos dela, mas em outras dinâmicas, evidenciando diferenças na qualidade do gesto uns dos outros. Nesse momento, eles também estão maquiados como palhaços que lembram as versões cinematográficas do personagem Coringa. Uma das leituras possíveis para isso está relacionada à origem do krump, evolução de um estilo de dança chamado clowning, tido como mais suave e alegre. Outra alude à ideia de caos e à imprevisibilidade incorporada pelas atitudes do personagem dos filmes.

Seja qual for a interpretação escolhida para o final, algo sintomático fica no ar. A artista mais ovacionada do espetáculo do Balé da Cidade não é do Balé da Cidade. Bill domina um gestual novo para o público habitual do Theatro Municipal, enquanto a maioria do elenco é talhado à base de balé e técnicas modernas. O que esses bailarinos carregam é caro a Ahmed, mas não parece suficiente para dar conta de sua visão artística. 

Acontece que, para fazer uma linguagem nova decantar no corpo, não basta treinamento, mas tempo. No contexto de uma companhia pública, em que as direções não raro variam de acordo com as mudanças de gestão, isso se torna um desafio. Em 1974, Antonio Carlos Cardoso bancou essa missão ao fazer o grupo abandonar por completo o clássico e se consolidar com um repertório de estética mais moderna. Isso abriu portas para a profissionalização dos artistas e uma repercussão nacional e internacional do BCSP.

Com Réquiem SP, o diretor artístico e coreógrafo provoca uma reflexão sobre a necessidade de renovação desse modelo para dar conta de uma vida que, tal como sugere Shakespeare, parece cada vez mais cheia de som e fúria, mas ainda sem sentido algum. Entre honrar o passado e mirar o futuro, o Balé da Cidade de São Paulo põe à prova sua própria identidade artística.

[O espetáculo 'Réquiem SP' segue em cartaz até o dia 23 de março; veja mais detalhes aqui]

Cena do espetáculo 'Réquiem SP', apresentado pelo Balé da Cidade no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Larissa Paz]
Cena do espetáculo 'Réquiem SP', apresentado pelo Balé da Cidade no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Larissa Paz]

 

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