Em ótima iniciativa, Ocam e Instituto Tomie Ohtake realizam concurso de composição
Música é alimento para a alma, é conforto para o coração. É ferramenta desbravadora do mistério da existência, é o diálogo íntimo com nossas emoções, nossos medos, nossos anseios, nossos amores e dores. E é também reflexo de nossa vida e indutora de transformações. Em toda a sua dimensão artística, a música é tudo isso e muito mais – e para cada um de nós, ainda algo diferente. Por isso, o ato de criação é um ato de despojamento, de desnudamento, do encontro de si. Por isso, também, é um ato de coragem. Quanto mais radical o mergulho, mais autêntica a arte, mais autoral o resultado.
Na música chamada erudita, a questão é ainda mais complexa. O compositor se apropria de um patrimônio e de uma linguagem centenária, que carrega em si já tanta informação e desvelamento, que o ato de criar se torna ainda mais desafiador. Na busca por meios de uma expressão individual e original, em meio a tanto que já foi inventado, é fácil cair em artificialidades técnicas. Por outro lado, é tentador enveredar por trilhas cômodas de uma linguagem gasta e experimentada, em que se perde o fio da descoberta deslumbradora e transformadora de uma criação verdadeiramente pessoal.
Assisti no domingo, 1º de setembro, no Museu da Casa Brasileira, ao concerto de premiação do Concurso de Composição Musical Tomie Ohtake, promovido pela Ocam – Orquestra de Câmara da ECA-USP em parceria com o Instituto Tomie Ohtake. Com direção de Gil Jardim, também diretor da Ocam, e de Silvio Ferraz, e tendo a participação de Lucas Coelho e Ronaldo Miranda, o concurso é voltado para jovens compositores de São Paulo e contou com três categorias – ensemble, orquestra de cordas e orquestra de câmara –, cada uma delas tendo como inspiração um quadro da artista plástica japonesa naturalizada brasileira Tomie Ohtake. A banca foi composta pelos compositores (em ordem alfabética) André Ribeiro, Sergio Kafejian, Tatiana Catanzaro e Valéria Bonafé. E o resultado foi auspicioso, revelando três jovens compositores em busca de suas vozes. Cada um deles, abrindo-se à criação, prospectando novas ideias, experimentando em busca de sua individualidade como autor.
Wellington Gonçalves iniciou os seus estudos musicais em São Bernardo do Campo e é formado pela Unesp, onde teve orientação de Flo Menezes e Alexandre Lunsqui. Ele é o autor de Dinâmica dos fluídos, escrita para um quinteto de sopros, cordas e percussão. “Trabalhei com arquétipos sonoros, que se transformam, como fluídos que fluem”, explicou Wellington, que no programa afirma que a obra nasceu de uma abstração imagética da obra de Tomie Ohtake. Em linguagem atonal, massas sonoras sofrem transformações com interações de instrumentos solistas.
Seguiu-se a obra de Yugo Sano Mani, intitulada A escuridão, o corpo vermelho e o fascínio, escrita para orquestra de cordas. Yugo, que também é violonista, formou-se bacharel em composição pela USP, onde teve aulas com Silvio Ferraz, Ronaldo Miranda e Fernando Iazetta. Yugo, na análise do quadro de Ohtake, buscou algo que abarcasse as suas diferentes camadas de interpretação – “encaro este processo criativo mais como um atravessamento afetivo do que como uma leitura literal da pintura”. A obra tem uma dimensão poética, misteriosa, algo espacial, e é bem resolvida em sua estrutura.
Na sequência, a Ocam interpretou a terceira obra vencedora, Afterimage. Homage to Tomie Ohtake, de autoria da polonesa Paulina Luciuk, que escreveu para a formação de orquestra de câmara. “Considero o trabalho como uma forma de ‘pós imagem’ da pintura de Tomie Ohtake”, destacou a compositora no programa. Paulina graduou-se em composição na Academia de Música de Cracóvia e, além de criação instrumental, também tem obras eletroacústicas. (Ela também é cantora lírica e atualmente é aluna da Academia de Ópera do Theatro São Pedro.) A obra tem personalidade, é repleta de ideias e soa como uma fantasia para pequena orquestra.
Para terminar o concerto, a Ocam interpretou uma versão – conforme o programa, “moderadamente moderna” – dos Quadros de uma exposição de Mussorgsky realizada pelo chinês Julian Yu. É uma transposição tímbrica muito feliz, que coloca a famosa música em uma perspectiva acústica bem diferente.
Com exceção da obra de Yugo, que teve regência do maestro assistente Enrico Ruggieri, o concerto teve direção do maestro Gil Jardim. E foi boa a performance da Ocam, tocando com convicção as músicas de seus colegas.
A ampla cobertura que serve de espaço para as apresentações – aberta na lateral para o belo jardim do Museu da Casa Brasileira – ouviu os sons de nossos dias, escritos e tocados por jovens músicos da nova geração. E, apesar da chuva, estava lotado, com pessoas assistindo de pé. Que beleza! Em meio a tanta estupidez e boçalidade, é uma alegria ver que há projetos e pessoas apostando no futuro...