“Fausto” é novo marco artístico do Festival Amazonas de Ópera

por Nelson Rubens Kunze 07/05/2018

Já é lugar-comum falar em “milagre na floresta” para se referir ao Festival Amazonas de Ópera (FAO), mas não adianta: entra ano, sai ano, e as produções feitas em Manaus se destacam por sua qualidade artística. É o caso, de novo, deste Fausto, de Gounod, título ambicioso, que impõe grandes desafios para qualquer teatro no mundo.

Fausto é a obra-prima de maior sucesso de Charles Gounod (1818-1893). Estreada em Paris em 1859, ela pertence ao gênero da opéra-lyrique, situada, na ópera francesa do século XIX, entre a suntuosidade da grand-opéra e a ligeireza da opéra comique. O título é considerado a melhor e mais eficiente adaptação do poema trágico de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) ao teatro lírico, também em razão de se ater mais à ação do drama do que a sua dimensão filosófica.

O grande destaque da récita do dia 4 de maio foi o ótimo desempenho musical da Amazonas Filarmônica, conduzida pelo maestro Luiz Fernando Malheiro (também diretor artístico do FAO). Com DNA de ópera – é provável que o conjunto seja o que mais tenha feito ópera no Brasil nos últimos 20 anos (vamos apenas lembrar que, neste período, o Teatro Amazonas deve ter apresentado mais de 60 títulos, do Anel integral de Wagner a Lulu de Alban Berg) –, a Amazonas Filarmônica logrou transmitir a história com todas nuanças e sutilezas da música francesa, de modo orgânico e com absoluta naturalidade. Claro que aí o mérito principal cabe ao maestro Malheiro, que, com conhecimento e talento, tem a capacidade de imprimir uma interpretação e uma agógica à música, que resultam em grande teatralidade.

Cena da ópera Fausto [Divulgação / Michael Dantas]
Cena da ópera Fausto [Divulgação / Michael Dantas]

Foi igualmente competente e feliz a encenação de André Heller-Lopes. Com estruturas modulares vazadas em desenhos que lembram motivos de uma catedral gótica (cenários de Renato Theobaldo), e que, com auxílio da iluminação de Fábio Retti, eram rearrumadas para delimitar espaços diferenciados para cada uma das cenas, Heller-Lopes alcançou resultados de grande beleza plástica. Gostei especialmente da primeira cena, com o gabinete de Fausto, e da cena da igreja, com a grande rosácea (cuja maquete digital ilustrou a capa da edição de abril da Revista CONCERTO). No geral, os cenários ofereceram um bom suporte para a narração e para a movimentação dos atores, que vestiram figurinos de Sofia Di Nunzio. Dadas as dimensões reduzidas do Teatro Amazonas, em algumas cenas, como a da quermesse no Ato II, o espaço pareceu apertado, dificultando a identificação dos protagonistas (nessa primeira aparição de Marguerite após o pacto de Fausto com Mefistófeles, eu teria mantido o seu figurino branco da primeira cena – com sua sugestão de castidade e inocência – distinguindo-a no meio do povo). Com grande habilidade, Heller-Lopes cria soluções cênicas que resultam em ótimo efeito teatral – o Fausto na cadeira de rodas, Mefistófeles conduzindo as pessoas com movimentos dos braços, o vinho de sangue, os “congelamentos” do coro no Ato II, a transformação de Mefistófeles em diabo na noite de Walpurgis ou a “elevação” da alma de Marguerite no fim da ópera. A concepção do diretor também reforça o papel de Mefistófeles como centro e fio condutor de toda trama.

E foi o baixo-barítono cubano Homero Perez, que fez Mefistófeles, o grande destaque vocal da noite. Com poderosa voz de ricos matizes, Perez encarnou o personagem com grande presença cênica, em emocionante interpretação. A seu lado, Fausto, ainda que cantado com propriedade pelo tenor italiano Alessandro Luciano, de voz cuidada mas sem a mesma intensidade, ficou um pouco apagado. Por sua vez, foi muito bem a soprano franco-brasileira Isabelle Sabrié, que fez Marguerite. Sabrié soube adequar com inteligência suas potencialidades vocais às exigências do personagem, em performance convincente.

Valentim foi cantado pelo barítono uruguaio Marcelo Guzzo, com emissão cuidada e voz aveludada. E foi muito bem Siebel, o jovem pretendente de Marguerite, feito com voz clara e boa desenvoltura pela mezzo soprano espanhola Anna Gomà. Os competentes Thalita Azevedo (como Marthe) e Joubert Junior (como Wagner), ao lado do bom Coral do Amazonas, completaram a parte artística.

Além do Fausto, assisti também a uma outra produção do FAO, a ópera Dessana, Dessana (com música do compositor amazonense Adelson Santos e libreto de Márcio Souza e Aldisio Filgueiras), realizada quase que exclusivamente por profissionais e solistas residentes em Manaus. Com temática local, a obra segue uma estrutura de musical e foi apresentada pelo Balé Folclórico do Amazonas e pela Orquestra Experimental da Amazonas Filarmônica, sob regência do maestro Otávio Simões.

Comecei falando em “milagre” amazonense, mas seria um equívoco compreender isso simplesmente como uma dádiva divina. Como realça a diretora executiva Flávia Furtado, o FAO é resultado de um investimento de muitos anos, que transformou a cidade de Manaus em importante polo produtor de cultura musical, uma “indústria cultural”, com escolas e diversas orquestras e grupos instrumentais. Desconfio que não haja, hoje, no Brasil, outro teatro com infraestrutura e capacidade de produção para realizar, no prazo de 5 semanas, os 5 títulos programados para esta 21ª edição do Festival Amazonas de Ópera: FaustoDessana, DessanaFlorencia en el Amazonas (Daniel Catan) e Acis e Galatea (Händel), além da uma estreia mundial, a ópera O vulcão azul, de João Guilherme Ripper.

[Nelson Rubens Kunze viajou a Manaus e assistiu ao Fausto a convite do Festival Amazonas de Ópera.]

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