Festival de Ópera de Óbidos termina com obras do alvorecer do século XX em torno da emancipação feminina

por Luciana Medeiros 23/09/2025

Programação apresentou a ópera Il segreto di Susanna, de Ermanno Wolf-Ferrari, e El amor brujo, balé de Manuel de Falla

“O ciúme lançou sua flecha preta / e se viu ferido na garganta”, escreveu Caetano Veloso na canção O ciúme de 1987. O sentimento complexo e incômodo, mistura de raiva e medo da perda, foi a tônica das duas obras que fecharam o Festival de Ópera de Óbidos 2025.  Il segreto di Susanna, de Ermanno Wolf-Ferrari com libreto de Enrico Golisciani é uma comédia de costumes, ligeira e divertida que estreou em 1909; El amor brujo, balé de Manuel de Falla de 1915/16 com texto de Maria Martínez Sierra traz a música intensa do flamenco. Em ambas, o tema se desdobra na ideia da emancipação feminina que tomava corpo nas primeiras décadas do século passado.

Foi um encerramento festivo do evento que, nesta edição, teve pela primeira vez a direção da soprano Carla Caramujo. “Pensei nestas duas obras em função justamente da emancipação, da irreverência e da ascensão do poder da mulher, um dos temas do festival também”, diz Carla.

Na primeira, um jovem casal – o conde Gil e a condessa Susanna – se desentende por conta das desconfianças do marido de que a mulher está recebendo um amante em casa. O mal-entendido se dá por conta do cheiro de tabaco no ambiente, já que apenas aos homens era permitido fumar. Só que é a condessa, sim, que cultiva o hábito. Na segunda, a história gira em torno de Candela, uma viúva que deseja voltar a amar, mas é impedida pelo fantasma possessivo de seu marido – e precisa realizar a dança do fogo para exorcizar esse espírito.

Dirigidas pelo britânico Max Hoehn, com sólida carreira na Europa, as duas peças se concretizam em encenações tão diversas quanto possível. Cenário e figurinos de Il segreto surgem com a estética dos anos 1930, já distante da virada do século e mais próxima da mudança do papel feminino na sociedade. É, escreve Hoehn no programa, “um vislumbre fascinante da história social. A política de género continua a ser um dos temas mais urgentes da atualidade”, lembrando que a história se baseia num caso real de divórcio pelo fato de a mulher fumar, na Inglaterra de 1880. Os cantores competentíssimos - o barítono ucraniano Nazar Mykulyak e a soprano portuguesa Ana Vieira Leite  mostraram um timing perfeito em cena, secundados pelo ator Gonçalo Ramalho que fez o criado (efetivamente mudo) Sante. A música da pequena ópera do veneziano com ascendência alemã Wolf-Ferrari é saltitante e efetivamente busca o efeito da comédia.

Já o drama gitano El amor brujo, de Manuel de Falla, ganhou nesta montagem um painel com a muralha de Óbidos e uma lua cheia em torno da fogueira ritual onde é feita a Dança do Fogo que liberta Candela de seu fantasma ciumento. Os bailarinos Catarina Ribeiro e Ivanoel Tavares apresentaram intensa e acrobática coreografia de Rita Abreu; a mezzo-soprano Maria Luisa de Freitas foi ponto alto da noite, em suas participações muito pontuais mas de alta intensidade dramática. De novo, as criações do diretor de arte Nuno Esteves – cenários e figurinos – foram de perfeito ajuste aos programas. No fosso da tenda, a Orquestra Filarmônica Portuguesa, com direção musical de Darrell Ang e participação do pianista Pedro Lopes, deu suporte preciso às duas produções. 

Antes disso, na quinta-feira à tarde, o FOO havia apresentado a ópera Café Europa, partitura complexa de Christoph Renhart com libreto de Alexandre Honrado – um interessante experimento musical e poético que levava à cena deuses e filósofos, com cantores/atores de impressionante preparo.

Carla Caramujo está confirmada na direção artística do festival de 2026. “Fiquei muito feliz com o resultado artístico e de público desta edição”, diz a soprano. “Ano que vem, certamente vamos elevar ainda mais o nível artístico do festival, que nesta edição já foi extraordinário. Estou grata a toda a equipe extraordinária, que acolheu e ajudou a concretizar esta minha programação tão audaciosa e  à receptividade do público”. De fato, as récitas estavam lotadas e a organização funcionou perfeitamente, incluindo as conversas prévias com artistas nos dois sábados e a hospitalidade nos intervalos, regados a vinho, café e a tradicional ginginha no copo de chocolate.

Cena da ópera 'Il segreto di Susanna' [Divulgação/Nuno Conceição/Festival de Ópera de Óbidos]
Cena da ópera 'Il segreto di Susanna' [Divulgação/Nuno Conceição/Festival de Ópera de Óbidos]

 

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