Álbum do selo Naxos com a primeira e a segunda sinfonias e o Noneto culmina uma série de três CDs dedicados ao compositor que a Filarmônica de Goiás, dirigida por Neil Thomson, gravou entre 2015 e 2017
O mais recente volume da série A Música do Brasil, da Naxos, permite-nos descobrir o Guerra-Peixe que o próprio compositor repudiava. Ao lado de sua faceta nacionalista exuberante, vemos ainda o lado que ele mesmo renegou: o de autor dodecafônico.
Talentoso violinista e regente, o petropolitano César Guerra-Peixe (1914-1993) foi uma figura dominante da música brasileira no século XX, quer como mentor do Movimento Armorial, no Recife, quer como arranjador de música popular (como no antológico álbum dos Afro-Sambas de Vinícius de Moraes e Baden Powell (clique aqui), de 1966, ou no jingle Pra Frente, Brasil, que embalou a conquista brasileira da Copa do Mundo de 1970), quer como rigoroso pesquisador do folclore, quer como professor de luminares como Guilherme Bauer, Ernani Aguiar, Nestor de Hollanda Cavalcanti, Clóvis Pereira, Sivuca e Paulo Moura, dentre muitos outros.
A estes pregou o nacionalismo aprendido na cartilha de Mário de Andrade, e que utilizou nas suas partituras mais célebres e executadas. Há, porém, um Guerra-Peixe anterior. Fascinado, como outros compositores de sua geração, pela carismática figura do alemão Hans Joachim-Koellreutter (1915-2005), aprendeu com ele o dodecafonismo de Schönberg, aplicado nas duas obras que abrem este CD da Naxos: a Sinfonia nº 1 e o Noneto – que recebem aqui suas primeiras gravações mundiais.
Poucas partituras sinfônicas brasileiras tiveram a fortuna internacional da primeira sinfonia de Guerra-Peixe: ela foi estreada pela Sinfônica da BBC de Londres, sob a regência de Maurice Miles, em 1946. Ainda mais: contou com o apreço de um professor de Koellreutter, o berlinense Hermann Scherchen (1891-1966), que a apresentou em Zurique com a Orquestra Tonhalle, em 1948.
A façanha não é pequena. Afinal, Scherchen foi um dos grandes divulgadores da música contemporânea no século XX, aparecendo com destaque em O jogo dos olhos, monumental romance autobiográfico de Elias Canetti, que afirma que o regente “mantinha-se à espreita do que fosse diferente, pois este permanecia ainda por aprender. Caiu-lhe como uma luva o período de renovação musical que vivenciou, pois, para se renovar, a música ramificou-se de maneira inaudita. Cada escola, contanto que fosse nova, colocava-o diante de uma tarefa, e resolver novas tarefas era o que queria e sabia fazer”. Para Canetti, Scherchen “era, assim, o primeiro a ter apresentado ao público esta ou aquela peça totalmente estranha – seu descobridor, por assim dizer. Cuidava para que essas descobertas se somassem, para que as houvesse sempre em maior número”.
Com engenharia de som do mago Ulrich Schneider, o disco não é menos do que primoroso. Thomson e seus comandados transmitem à perfeição os estilos contrastantes de Guerra-Peixe presentes no álbum, entregando a transparência requerida pela Sinfonia nº 1, a austeridade camerística do Noneto e a viçosa catarse da Sinfonia nº 2
Concisa e sofisticada, a Sinfonia nº 1 tem uma textura translúcida e instrumentação extremamente criativa. Não por acaso, estimulou o apetite onívoro de Scherchen, que em 1948, na Rádio de Zurique, estrearia outra criação serialista de Guerra-Peixe: o Noneto, para flauta, clarineta, fagote, trompete, trombone, piano, violino, viola e violoncelo, cujo caráter ascético faz duvidar que a partitura seja da mesma lavra do autor do colorismo variegado de A Retirada de Laguna e Museu da Inconfidência.
Polemista inflamado, Guerra-Peixe não conseguiu trocar de tendência estética como quem troca de camisa. Abjurou o dodecafonismo de forma ruidosa: no virulento artigo Que ismo é esse, Koellreutter?, publicado em 1953, na revista Fundamentos, acusou o ex-mestre de plagiar escritos do musicólogo luso Fernando Lopes-Graça (1906-1994).
Assim, escrita em 1960, para o concurso que premiaria uma obra dedicada à construção da nova capital brasileira (e que terminou em tríplice empate entre ele, Claudio Santoro e Guerra Vicente), a segunda e derradeira sinfonia de Guerra-Peixe, com o subtítulo Brasília, parece vinda de um outro mundo.
Eufórica, colorida e cinematográfica, a obra é uma afirmação vigorosa do nacionalismo musical ao qual nos acostumamos a associar o nome de Guerra-Peixe. A sinfonia prevê intervenções do coro ora com parlendas, ora com vocalises e onomatopeias, e ainda um narrador que leria excertos de um discurso do presidente Juscelino Kubitschek – na presente narração, substituído por um trecho da fala de JK no dia da inauguração de Brasília, pela voz do próprio mandatário.
O álbum culmina uma série de três CDs dedicados ao compositor que a Filarmônica de Goiás, dirigida por Neil Thomson, gravou entre 2015 e 2017, ainda antes que a série da Naxos fosse criada. Com engenharia de som do mago Ulrich Schneider, o disco não é menos do que primoroso. Thomson e seus comandados transmitem à perfeição os estilos contrastantes de Guerra-Peixe presentes no álbum, entregando a transparência requerida pela Sinfonia nº 1, a austeridade camerística do Noneto e a viçosa catarse da Sinfonia nº 2. Fosse qual fosse o seu “ismo”, Guerra-Peixe era um baita compositor.
[O disco está disponível na Loja Clássicos]
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