‘Hilda Furacão’, de Tim Rescala, falha em soprar frescor

por Márvio dos Anjos 08/11/2024

No esforço elogiável de criar laços com o público, compositor tende a explicar demais as intenções da cena, com um didatismo à beira da condescendência

A Orquestra Ouro Preto é uma das companhias mais bem organizadas do país. Poderia ter sido apenas uma orquestra de crossover, uma vez que extrai muito de sua sustentabilidade comercial a partir de projetos com grandes artistas da MPB, como Alceu Valença, João Bosco e projetos que remetem a artistas pop de Minas, como o grupo Pato Fu e o finado Vander Lee. Com quase 100 mil seguidores no Spotify e 225 mil no Instagram, o grupo musicalmente dirigido por Rodrigo Toffolo repetidamente demonstra compromisso com uma ideia de ópera brasileira, em parceria com Tim Rescala, compositor de renomada experiência em musicais, trilhas sonoras e óperas, além de ótimo comunicador e ator incidental. 

Depois do sempre gracioso Auto da Compadecida, que circulou pelo Brasil e chegou até a praia de Copacabana em 2023, a OOP encomendou a Rescala uma ópera baseada em Hilda Furacão. A peça é inspirada na obra do escritor mineiro Roberto Drummond, que também teve encarnação como série da Globo, estrelada por Ana Paula Arosio. No papel-título, a moça de boa família que desafia a moralidade de Belo Horizonte dos anos 1960 quando decide se prostituir, provocando paixões e revolta enquanto o país ruma para o golpe de 1964.

A fórmula de combinar ópera com títulos massificados pela TV permite à OOP sucessos de público, e isso pôde ser visto também no Theatro Municipal de São Paulo, nos últimos dias 5 e 6, em que Hilda Furacão ganhou sua primeira encenação. Por tudo isso, é impossível não simpatizar com o projeto dos mineiros.

Se é verdade que a Orquestra Ouro Preto concretiza espetáculos de apelo público, há algo que, do ponto de vista musical, decepciona, e que já era perceptível em Auto. No esforço elogiável de criar laços com o público, os libretos de Tim Rescala tendem a explicar demais as intenções da cena, com um didatismo à beira da condescendência. 

Um exemplo é o dispensável dueto cantado por Fernando Portari (tenor, que interpreta o narrador Drummond) e o Leigo, praticamente descrevendo toda a tristeza do Frei Malthus (Jabez Lima, tenor), que depois virá à cena para reiterar, numa prece romântica, tudo que dele já se disse. Além disso, a partitura caracteriza pouco dos personagens, sem revelar deles muitas sutilezas para além do texto que cantam. Sem ideias dramatúrgicas para sua música, Hilda sopra pouco frescor em seus ouvintes.

Em Hilda Furacão, essa combinação de libreto simplório com música funcional chega às raias do previsível, sendo possível adivinhar qual será a resposta melódica que se segue aos primeiros quatro compassos propostos por qualquer personagem. Como Hilda Furacão preenche pouco mais de 2 horas e 40 minutos, o resultado é especialmente frustrante, de tão quadrado. Rescala apresenta sua obra como uma “ópera com sabor de musical”, o que se torna um salvo-conduto para sambas-canções e boleros, mesclados a árias de acompanhamento muito rítmico, à maneira do bel canto, e derramamentos românticos que remetem a Mascagni, como na já mencionada prece de Malthus. 

Os riscos da partitura fácil, conduzida sem problemas por Toffolo, ficam todos nas costas dos personagens do tenor Jabez Lima e da soprano Marília Vargas (que interpreta com desenvoltura tanto a carolíssima senhora Loló Ventura quanto a madame Janette). Os papéis de Carla Rizzi (mezzo que interpretou Hilda) e Johnny França (barítono, como o sedutor Aramel) foram desempenhados com correção, e o coro teve participação inspirada. 

A solução cênica de Juliano Mendes é elogiavelmente funcional, enquanto o design de Luiz Abreu comunica rapidamente a atmosfera dos anos 1960. Se o primeiro ato é um pouco mais coeso, o segundo parece ter enorme preocupação de abarcar múltiplas subtramas, e acaba perdendo mais força.

Ao fim, a Orquestra Ouro Preto tem o mérito de perseguir e concretizar seus objetivos, com organização e profissionalismo: é difícil imaginar que Hilda Furacão terá intérpretes mais dedicados do que os que se exibiram em São Paulo. O que se espera do grupo e de seu principal colaborador é um material que almeje algo mais maduro, sem se preocupar tanto com uma comunicação tão fácil de intenções e sentimentos. Quando isso ocorrer, a OOR certamente liderará uma concepção de companhia brasileira de ópera sem paralelo em nossa história.

[Após passar por São Paulo, 'Hilda Furacão' terá récitas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro; veja mais detalhes aqui.]

Banner críticas Site CONCERTO

Leia mais
Revista CONCERTO Ultrapassando limites, por Camila Fresca
Crítica ‘Hilda Furacão’ segue parceria de sucesso entre Tim Rescala e Orquestra Ouro Preto, por Nelson Rubens Kunze

Apresentação de 'Hilda Furacão' no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/@raphagarcia]
Apresentação de 'Hilda Furacão' no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/@raphagarcia]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.