Ao mesmo tempo em que celebra uma obra da literatura nacional, ópera Hilda Furacão é mais uma importante contribuição da Orquestra Ouro Preto para a ampliação e a difusão do repertório brasileiro contemporâneo
Uma ópera com ares de musical. Assim o compositor Tim Rescala classifica o seu mais recente trabalho, a ópera Hilda Furacão. Trata-se da nova encomenda da Orquestra Ouro Preto ao compositor, uma parceria que já tinha gerado O auto da compadecido, ópera sobre o texto de Ariano Suassuna, cujo sucesso ficou marcado por uma apresentação para milhares de pessoas na Praia da Copacabana, no Rio de Janeiro.
Hilda Furacão é baseada no romance de Roberto Drummond, publicado em 1991. O livro conta a história da prostituta Hilda Maia Valentim, famosa em Belo Horizonte nos anos 1960, onde morava no quarto 304 do Maravilhoso Hotel e frequentava os lugares da burguesia belo-horizontina.
Como no livro, o libreto da ópera, também escrito por Rescala, faz do narrador um personagem da trama, que conta dos acontecimentos, mas que tem ele mesmo também um relacionamento com Hilda. Ela, por sua vez, se vê atraída pelo religioso Frei Malthus, que junto com a conservadora dona Loló procura banir o Maravilhoso Hotel, em cuja porta os pais de família fazem fila. Paralelamente a isso, o milionário Antônio Luciano quer conquistar Gabriela, que por sua vez é cortejada por Aramel. Também o ambiente político entra em cena, já que Drummond é um jornalista de esquerda e é interrogado pela polícia. No fim do espetáculo, vem o golpe de 1964 – mas no dia 1º de abril, o dia da mentira! – que acaba por frustrar os planos do casal enamorado Hilda Furacão e Frei Malthus.
Com um argumento desses, Tim Rescala está em casa e cria uma deliciosa opereta brasileira de costumes – ou uma ópera com ares de musical, como escreve no programa. Com sua verve criativa, Rescala compõe duas horas e meia de música espontânea, acessível e bem-acabada. Cada novo número é uma surpresa, seja pelo teor da narrativa, seja pela inspiração musical.
E nesse caldeirão cabe tudo, com muita musicalidade e humor. Assim, ouve-se música brasileira, de samba-canção à MPB – há melodias que poderiam ganhar vida autônoma –, mas também passagens sinfônicas clássicas e até trechos solistas que lembram árias de grandes óperas românticas. Eu ouvi belcanto, Mozart, Weill, Chico Buarque, Puccini... É tanta diversidade de estilos e gêneros, do erudito ao popular, que eventualmente soa até irreverente. Mas é essa a assinatura de Rescala, um compositor sem fronteiras, que escreve música com grande fluência e em que o prazer da criação transparece a cada compasso.
A ópera Hilda Furacão estreou no último dia 5 de novembro no Theatro Municipal de São Paulo. A direção de cena esteve a cargo de Juliano Mendes e a direção de arte, de Luiz Abreu. Um cenário simples formado por uma estrutura metálica e projeções no fundo do palco ofereceram um espaço adequado para o desenvolvimento da história. Assim também, os figurinos e a iluminação combinaram bem com a proposta direta da partitura.
No geral, foi muito boa a performance do elenco, com destaque para Carla Rizzi (Hilda Furacão), Marília Vargas (dona Loló e Madame Janete) e Jabez Lima (Frei Malthus). Também cantaram e atuaram com desenvoltura e musicalidade Johnny França, que fez Aramel, e Marcelo Coutinho, como o policial Nelson Sarmento e o empresário Antônio Luciano. O tenor Fernando Portari, que interpretou o papel de Drummond, compensou algumas dificuldades vocais com a sua natural e convincente habilidade cênica. Também teve importante participação o coro de 16 vozes, tanto compondo a cena como em competentes intervenções de seus solistas.
Hilda Furacão foi realizada pela Orquestra Ouro Preto, que fez uma boa apresentação, sob regência de seu titular Rodrigo Toffolo, que é também o diretor artístico e quem concebeu o projeto da ópera. Toffolo logrou um bom e eficiente resultado musical, equilibrando com sucesso o som da orquestra com as vozes do palco.
Prestes a completar 25 anos de atividades, a Orquestra Ouro Preto é um grupo independente que se sustenta por meio de patrocínios privados. Assim, o repertório de seus projetos abarca desde concertos clássicos – com diversas encomendas a compositores brasileiros – até apresentações de arranjos sinfônicos da MPB, atingindo e aglutinando novos públicos. Além de sua atividade de difusão musical, a entidade mantém a Academia Orquestra Ouro Preto, na qual proporciona formação e experiência orquestral para jovens instrumentistas.
Ao mesmo tempo em que resgata e celebra uma obra da literatura nacional, a ópera Hilda Furacão é uma importante contribuição da Orquestra Ouro Preto para a ampliação e a difusão do repertório brasileiro contemporâneo. Tanto melhor ver a repercussão pública do espetáculo, com o Theatro Municipal lotado aplaudindo a iniciativa.
Hilda Furacão terá récitas ainda em Belo Horizonte (Palácio das Artes, dias 21 e 22 de novembro) e no Rio de Janeiro (Cidade das Artes, dias 24 e 25). Clique aqui para mais detalhes do Roteiro Musical.
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