É difícil dissociar a percepção que temos da Sinfonia nº 1 de Mahler do debate sobre a importância ou não de um programa extramusical. O compositor, em um primeiro momento, definiu, movimento a movimento, um caminho que vai do nascimento do mundo a uma marcha fúnebre e a um final que “é a expressão repentina de um coração profundamente ferido”. Mais tarde, porém, ao editar a obra, Mahler desautorizou o programa que ele próprio criara.
Se o levarmos em consideração, a sinfonia fala da jornada de um herói, da juventude à compreensão da comédia humana, da inevitabilidade de um caminho que parte, nas palavras de Mahler, do Inferno ao Paraíso. É a jornada do personagem do escritor Jean Paul no romance Titã, nome dado nas primeiras apresentações à sinfonia – e que Mahler também abandonou, desta vez ainda mais cedo, logo após a terceira apresentação da obra, em 1888.
Assistente do compositor, o maestro Bruno Walter complicou ainda mais a questão ao definir a sinfonia como o “Werther de Mahler”. A referência é ao livro Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, no qual o poeta “busca a autocompreensão em uma luta em meio a descobertas e desilusões devastadoras”.
Na forma – uma coletânea de cartas escritas a um amigo do poeta – e no conteúdo, o livro de Goethe é símbolo da passagem do classicismo para o romantismo, no contexto do movimento Sturm und Drang (Ímpeto e Tensão), tão marcante para as gerações seguintes de artistas alemães. Entre eles, Beethoven – e não são poucos os autores que colocam o seu Concerto para piano nº 3, em sua força e paixão, como uma das obras em que o compositor melhor incorpora elementos do movimento na busca por uma linguagem única e pessoal.
Se considerarmos tudo isso, há muito sentido em unir o concerto de Beethoven e a sinfonia de Mahler em um programa, como fez a Osesp na semana passada. As peças estão separadas por 80 anos, e dialogam com a jornada das paixões humanas com sensibilidades diferentes. Ainda assim, aproximam-se no modo como expandem os gêneros a que se dedicam, levando a forma a limites que ambos implodiriam de vez mais tarde em suas carreiras.
Na leitura que Thierry Fischer ofereceu das obras não faltou ímpeto ou tensão. Há uma preocupação clara em estabelecer narrativas de força e intensidade, tanto no Beethoven quanto em Mahler – na sinfonia em especial, sua compreensão da peça parece menos preocupada em estabelecer um todo orgânico e mais em entendê-la como um conjunto de fragmentos contrastantes.
É um ponto de partida interessante, não tentar levar ordem ao que é caos, diferente do Mahler ao qual nos acostumamos nos anos de Marin Alsop como regente titular, mais contido e trágico. Mas, na prática – e com uma Osesp que, na quinta-feira, desde o início do primeiro movimento, soou desconcentrada e às vezes hesitante –, a constante aposta em dois polos exclui da interpretação meias-tintas extremamente importantes.
No Beethoven, por sua vez, ficou evidente a busca de uma expressividade associada ao senso de estilo, um dos motivos pelos quais Fischer resolveu fazer da primeira Escola de Viena um dos eixos do início de sua gestão. O elo fraco, aqui, esteve no solista, o pianista canadense Tom Borrow – artista em residência da Osesp neste ano, ele interpretou nas últimas semanas os três primeiros concertos para piano de Beethoven e volta no ano que vem para encerrar o ciclo.
Impressionam em Borrow o toque límpido e a clareza nas articulações. Mas, à medida em que a peça se desenvolve, falta um mergulho mais profundo na obra. Independentemente de programas extramusicais, a mudança estritamente musical do primeiro para o segundo movimento é a passagem entre dois mundos, da força para aquilo que é etéreo, que ganha sentido na harmonia e nos espaços vazios e silêncios – uma compreensão que faltou a Borrow e fez de sua leitura, no final das contas, monótona e pouco expressiva.
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