Por Maria Eugênia de Menezes [Maria Eugênia de Meneses é jornalista e crítica]
Jogar bola, andar de bicicleta, empinar pipa no céu. São imagens que nos remetem imediatamente à infância. Mas, em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, quais serão as cenas que nossas crianças guardarão na memória? Nesse contexto, parece mais importante do que nunca que as crianças tenham a oportunidade de se envolver com formas presenciais de arte, como a dança. Além do papel que pode exercer no desenvolvimento físico de corpos em crescimento, paira também a sua contribuição crucial no desenvolvimento emocional e cognitivo, preparando as novas gerações para uma vida de expressão criativa e não apenas de consumo – seja de objetos, seja de conteúdos.
Entre as criações e espetáculos dedicados ao público infantil, alguns se destacam, tanto por sua excelência artística quanto por sua capacidade de envolver e inspirar os espectadores mais jovens, superando as diferenças geracionais. Um exemplo notável disso é O quebra-nozes: um balé que encanta crianças em todo o mundo com sua música, sua história e uma bela coreografia.
Em São Paulo, há décadas a Cisne Negro Cia de Dança encena sua versão do clássico. Uma das três criações para o balé do compositor russo Pyotr Ilyich Tchaikovsky, O quebra-nozes estreou em 1892, em São Petersburgo. Sua história se baseia na versão de Alexandre Dumas, pai, para um conto de E.T.A. Hoffmann, “O quebra-nozes e o rei dos camundongos”.
Em cena, acompanhamos as aventuras de um quebrador de nozes, trajado como um soldado, durante uma noite na casa da menina Clara. “É uma obra em que as crianças se identificam com o sonho de Clara durante uma festa de Natal”, define Danny Bittencourt, responsável pela direção artística e coreográfica da leitura da Cisne Negro, ao ser questionada sobre o motivo para o encantamento de gerações. Em 2023, a companhia celebrou a notável marca de 40 anos do espetáculo.
Ao longo de dois atos, bailarinos do corpo da Cisne Negro e convidados de outras companhias unem-se para dar vida à fantasia de uma menina que recebe muitos presentes, mas se encanta de forma especial com um deles, um boneco quebra-nozes. Ao adormecer, ela entra em um universo onde os brinquedos ganham vida, dançam e lutam, transportando-os para os Reinos das Neves e dos Doces. Lá, Clara assiste a danças típicas de vários países e acontece o conhecido grand pas-de-deux da Fada Açucarada. Embora o ponto de vista da narrativa seja o de Clara, o papel mais desafiador do ponto de vista coreográfico cabe à Fada. Ápice do segundo ato, onde a dança alcança sua plenitude de beleza e graciosidade, neste pas-de-deux a Fada Açucarada e o príncipe realizam uma dança com movimentos fluidos e elegantes, na qual parecem flutuar pelo palco em perfeita harmonia.
O espetáculo tem ainda um potencial extra de encantamento, que é a presença de crianças em cena
O espetáculo tem ainda um potencial extra de encantamento, que é a presença de crianças em cena. Anualmente, é costume que a companhia selecione 12 alunos de sua escola de dança para integrar a versão profissional. “Já é uma tradição para as crianças participarem de nossa produção. Todos os anos, elas ficam ansiosas pela temporada e por saber se serão escolhidas”, comenta Danny Bittencourt, ressaltando a importância de as crianças se identificarem e se inspirarem com o que veem no palco. “As crianças podem se espelhar em grandes profissões e levar esta experiência para vida pessoal e profissional delas.”
Em sua programação de 2024, a São Paulo Cia. de Dança também prevê uma versão, criada especialmente para o conjunto, intitulada O quebra-nozes no mundo dos sonhos. Nessa releitura do libreto de E.T.A. Hoffmann, o conto natalino aparece pelo olhar de Marcia Haydée. Coreógrafa e bailarina brasileira de prestígio internacional, Haydée traz referências de nossa cultura popular – como a capoeira – mescladas à estrutura coreografada originalmente por Marius Petipa. Encenada pela primeira vez em 2022, a criação deve retornar aos palcos do Teatro Sérgio Cardoso de 29 de novembro a 15 de dezembro.
Para a plateia infantil, clássicos – como A bela adormecida e O lago dos cisnes – podem, muitas vezes, marcar o primeiro contato com a dança. É usual ainda que, nas escolas, os pequenos sejam também introduzidos à dança por meio da cartilha clássica. A cena brasileira, contudo, é muito mais diversa e podemos perceber em companhias contemporâneas um pensamento e um envolvimento genuínos com o público mais jovem.
Uma das mais consistentes pesquisas no segmento de dança contemporânea para crianças é realizada pela Balangandança
Uma das mais consistentes pesquisas no segmento de dança contemporânea para crianças é realizada pela Balangandança. Há 27 anos, o grupo conduzido por Georgia Lengos aborda a linguagem corporal infantil e valoriza a participação dos pequenos espectadores na criação e na recepção dos espetáculos. Com um olhar atento às danças populares brasileiras, mas também às brincadeiras, ao lúdico e à espontaneidade.
Pioneira em estimular o pensamento e os estudos sobre esse segmento no país, a companhia tem no repertório espetáculos desde o mais recente “Presente! Feito da Gente” (2018) até obras consagradas pelas plateias como “O Tal do Quintal” (2006). O título mereceu o prêmio da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e marcou de tal forma a trajetória do grupo, que mereceu remontagem em 2017. Em cena, as brincadeiras e os sonhos das crianças transformam o palco em um grande quintal, onde corpo e movimento se confundem.
“Bichos Dançantes” marcou a primeira incursão da carioca Focus Cia. de Dança no universo infantil. A criação, que data de 2021, era um sonho antigo de Alex Neoral, que assina direção, texto, concepção e coreografia. Misturando humor e questionamentos, o espetáculo traz a história da jabuti Elisa, que completa 100 anos e convida oito animais para a sua festa. Entre os bichos, ela percebe, há um desejo em comum: todos querem ser felizes. Mas, com a experiência e a sabedoria que acumulou ao longo dos anos, Elisa propõe desafios e uma aventura para que encontrem a felicidade.
Para compor as imagens dos diferentes animais – um peixe, um coelho, uma água-viva etc – Neoral contou com as vozes de atores e a caracterização de figurinos e maquiagem. Sempre recusando, porém, o que lhe parecesse óbvio e caricato. “Buscamos nos figurinos e no visagismo algo que siga a linha das obras da Cia., mesmo entrando nesse universo infantil. A busca foi por algo que, mesmo que direto e identificável, tivesse uma leitura contemporânea e sofisticada”, comenta o coreógrafo. “Através do olhar da figurinista Ursula Félix e do visagista Daniel Reggio, as crianças e adultos conseguem ler os animais no palco, porém sem ser primário na concepção.”
O Grupo Corpo Molde surgiu em 2013, no Campo Limpo, região sul de São Paulo. O desejo do bailarino e coreógrafo Renan Marangoni era reunir jovens para realizar pesquisas corporais que escapassem às suas percepções mais imediatas. Eles, então, passaram a conceber e produzir espetáculos que fugissem dos estereótipos comumente ligados às representações da periferia. Quando estreou, em 2017, “Bambaquerê” reunia intérpretes de 12 a 18 anos para passear por temas caros à infância: as brincadeiras populares, o ambiente escolar, as descobertas da adolescência.
Criada com recursos próprios e sem apoio de mecanismos de incentivo, “Bambaquerê” permanece no repertório do grupo
Criada com recursos próprios e sem apoio de mecanismos de incentivo, “Bambaquerê” permanece no repertório do grupo. A idade dos intérpretes mudou, atualmente a montagem traz dançarinos de 19 a 35 anos, mas mantém o vínculo com as plateias mais jovens. Percorrendo as salas de espetáculo da cidade ou espaços em escolas e centros comunitários das periferias, o espetáculo não apenas mergulha em temáticas dessa faixa etária, como também busca trazer possibilidades de movimento que ultrapassam o clássico. Apresenta contribuições da dança contemporânea, das danças brasileiras e das danças urbanas.
Após “Bambaquerê” – que significa dança em confusão – o Corpo Molde criou outros títulos, propondo discussões completamente diversas, como nos casos de “Corpo Ancestral” e “Casa - Um Cortejo a Lugar Nenhum”. Em junho, a companhia se prepara para estrear “Djovenski”, uma dura reflexão sobre os fluxos migratórios internacionais e as consequentes situações de vulnerabilidade envolvidas.
Contudo, a experiência de ter crianças na plateia, acredita Marangoni, marcou e influencia ainda hoje o método criativo dos artistas. “A tentativa de fazer com que o público se sinta imerso na montagem é um traço que permanece conosco”, aponta o diretor. “Aprendemos ali a colocar o espectador não apenas em uma posição passiva, de receber o que vê, mas em transformá-lo em protagonista das ações.”
No cenário da onipresença das telas e da absorção apática de informações parece mais importante do que nunca que as crianças tenham a oportunidade de se envolver, tendo contato com as próprias emoções de maneira criativa e saudável, vendo na prática como se trabalha em equipe, com cooperação e empatia, sonhando com outros mundos, ainda a serem inventados.
PARA SABER MAIS
O Quebra-Nozes no Mundo dos Sonhos (São Paulo Cia. de Dança) - clique aqui
O Quebra-Nozes (Cisne Negro Cia. de Dança) - clique aqui
Presente! Feito da gente (Balangandaça) - clique aqui
Bambaquerê (Grupo Corpo Molde) - clique aqui
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