Na Sala São Paulo, Osesp prepara viagem que tem tudo para fazer história

por Camila Fresca 02/09/2022

Nas últimas semanas, a Osesp levou ao palco da Sala São Paulo dois programas que apresentará em breve nos EUA, sob regência de Marin Alsop. Ambos giram em torno da música de Villa-Lobos e são bastante distintos – menos pelo repertório em si do que pela concepção geral. Os concertos serão apresentados em outubro no Carnegie Hall, em Nova York, dentro da temporada oficial do teatro dedicada a orquestras internacionais.

Nos dias 25 a 27 de agosto, Sheherazade, de Rimsky-Korsakov, abriu o programa. Em quatro partes e mais de 40 minutos, é uma peça longa e sedutora, e foi tocada com muita correção e precisão pela orquestra. Na turnê, ela funcionará como uma espécie de cartão de apresentação, mostrando do que é capaz o grupo num repertório que é conhecido pelo público de concertos. 

A segunda parte é toda dedicada a obras de Villa-Lobos, é aí temos o momento em que a orquestra irá mostrar sua especificidade, seu entendimento e maturidade na obra do maior compositor brasileiro e que, no entanto, ainda é muito menos tocado e conhecido no exterior do que poderia. Parece uma boa ideia iniciar com o Prelúdio das Bachianas brasileiras nº 4. É o Villa-Lobos consagrado, uma de suas peças mais conhecidas internacionalmente. É como se a orquestra mostrasse “de quem estamos falando”.

Em seguida vem o Concerto para harmônica e orquestra. Obra escrita nos últimos anos de vida do compositor, sob encomenda do harmonicista norte-americano John Sebastian, é um concerto bonito e para um instrumento bastante inusual nas salas de concerto. É uma ótima escolha, chamando a atenção do ouvinte sem precisar cair numa ideia clichê de música brasileira.

O solista é José Staneck, que tem muita intimidade com a obra e a executa maravilhosamente bem. E, se a peça não é um clichê brasileiro, ao mesmo tempo algumas inflexões melódicas da harmônica nos transportam para o universo da canção nacional. O movimento lento tem certa melancolia, com um quê de Edu Lobo, e na cadência do instrumento, no terceiro movimento, por breves instantes parece que vai surgir a valsa Imagina, de Tom Jobim. É como se Villa-Lobos fosse o pai da música moderna brasileira em geral, indicando caminhos inclusive para a MPB que surgiria dali algumas décadas – não é à toa que é o músico clássico mais conhecido e regravado no universo popular.

A segunda parte do concerto vai num crescendo Villa-Lobos: começa com um trecho curto que é dos mais conhecidos internacionalmente, segue com uma obra pouco usual que o público vai adorar descobrir e se encerra com uma obra-prima. Orquestra, coros Acadêmico e da Osesp interpretam o Choros nº 10, que mistura música indígena dos paresi (Ená Môkôcê cê-maká) a um schottisch de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense. A cabeça de Villa-Lobos, fervilhando após sua primeira viagem à Paris, digerindo as propostas da Semana de Arte Moderna, concebe em 1926 uma obra genial, uma explosão de energia e criatividade – obra que a orquestra conhece bem e toca com muita propriedade. Coro, orquestra e até Marin Alsop a interpretaram “dançando” ao ritmo irresistível. Ao final, a sala cheia agradeceu o espetáculo com aplausos calorosos. Na quinta, dia 27, houve dois bis: a repetição do trecho final do Choros nº 10 e, de Edu Lobo, Pé de vento, da Suíte popular brasileira, em arranjo de Nelson Ayres.

Há apenas uma nota dissonante nesse programa, que nada tem a ver com a parte musical ou a turnê, mas sim com o “selo” que a ele foi colado: o de “Mulheres na música”. É certo que a Fundação Osesp está ciente do movimento cada vez maior por equidade de gênero na música de concerto. Mas o que, na prática, torna esse concerto diferente do que o grupo sempre fez ou faz? A presença de Marin Alsop? Sempre houve concertos com Marin ou outras convidadas, sem que antes fossem classificados como “Mulheres na música”. É evidente que não houve nenhum esforço, nenhuma mudança relevante que procurasse contemplar essa demanda urgente. Se a Osesp quer contribuir para o movimento que defende maior participação de mulheres na música clássica, deve investir de verdade na presença de outras regentes, solistas e sobretudo na presença de obras de compositoras na programação. 

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O segundo programa da turnê, que a orquestra leva ao palco ainda hoje e amanhã, é ainda mais especial. Intitulado “Floresta Villa-Lobos”, é um grande espetáculo multimídia, contínuo, centrado na obra do compositor em diálogo com outros autores do século XX e XXI que o sucederam, e tendo como fio condutor a natureza do Brasil. As obras dialogam com um vídeo de Marcello Dantas, que parte da música para compor imagens que mostram espécies da fauna brasileira e que “podem sugerir tantas outras formas de enxergar o Brasil e a sua biodiversidade”, nas palavras do artista.

Nhanderú (“deus”, em tupi-guarani), de Clarice Assad, dá início ao programa. A obra é um prelúdio para o Choros nº 3, “Pica-pau”, construído a partir da melodia “Nozani-ná” dos índios paresi. Recolhido por Roquette Pinto, o tema é recorrente em diferentes obras de Villa-Lobos. Na sequência vem Monólogo das águas, lindo trecho de Canticum naturale, obra da década de 1970 de Edino Krieger, com solos da soprano Camila Titinger.

Naturalmente, a música orquestral se dissolve, a iluminação muda e dá lugar ao Choros nº 5, “Alma brasileira”, para piano solo, com Olga Kopylova. Seguindo no mergulho de aspectos dessa “alma brasileira” temos os primeiros movimentos da magnífica Sinfonia dos orixás, de Almeida Prado. 
Marcando a metade da apresentação – e pode-se dizer chegando ao ápice de um espetáculo que é todo feito de grandes momentos – temos uma das conhecidas canções da obra Floresta do Amazonas, praticamente a última composição de Villa-Lobos. “Cair da tarde”, cujo texto de Dora Vasconcellos pode ser lido como uma natureza em fuga, triste e escura (A garça voou, a sombra ficou [...] A mata dormiu, o vento acabou), é também cantada por Camila Titinger, e acompanhada por imagens de uma floresta em chamas. A combinação pungente de imagem e música, nesse momento, cria quase que um tempo em suspensão, e nos lembra de imagens tristes e chocantes de incêndios recentes (e recordes) nos biomas brasileiros.

Do ponto de vista visual, o espetáculo se torna ainda mais interessante daqui até o final, talvez por que apresente imagens menos óbvias e mais poéticas. Com vigor, Onze, peça para percussão de Marco Antônio Guimarães (criador do grupo Uakti), leva a tristeza embora, sendo seguida por dois trechos de Águas da Amazônia, peça de Philip Glass da década de 1990 criada para o grupo Uakti e que retrata diferentes rios da região. 

Na reta final, Tom Jobim, herdeiro direto de Villa-Lobos – seja na importância para a música brasileira, seja no amor pela natureza do país –, se faz presente nas canções Boto e Passarim, no qual as coralistas da Osesp cantam com microfone, à maneira do coro feminino que acompanhava Jobim na fase final de sua carreira. Voltamos então a Villa-Lobos para a conclusão da jornada: a introspecção do “Coral” (canto do sertão) e da “Ária” (cantiga) das Bachianas nº 4 comparecem, para logo darem lugar à explosão de energia do trecho final do Choros nº 10.

Ambos os programas acabam da mesma forma, embora sejam diferentes na concepção. Ambos, no entanto, com resultados excelentes. A Osesp tem tudo para fazer história na próxima turnê. (O concerto dessa semana será transmitido ao vivo hoje e poderá ser conferido aqui.

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Técnicos durante ensaio do programa 'Floresta Villa-Lobos' [Reprodução/FacebookOsesp]
Técnicos durante ensaio do programa 'Floresta Villa-Lobos' [Reprodução/FacebookOsesp]

 

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