Vale a pena sair de casa para ouvir pela enésima vez o repertório que já foi pisado e repisado por tanta gente? Bem, se for para presenciar a execução burocrática e preguiçosa de obras programadas apenas para trazer mais público a uma temporada modorrenta, a resposta, obviamente, é não. Porém, se as performances tiverem o nível de energia e frescor que Joshua Bell e a Academy of St Martin in the Fields trouxeram nesta semana à Sala São Paulo, não há como não berrar um altissonante sim.
Uma espécie de Dorian Gray norte-americano do violino, cuja face de garoto se recusa a envelhecer, Bell está com 54 anos, e vem se apresentando em nossas terras com certa regularidade já há umas duas décadas. Desde sempre, sua perfeição técnica e sonoridade imaculada são motivos de pasmo continuado. Mas a novidade agora foi assisti-lo à frente do grupo londrino cuja direção musical assumiu em 2011, sucedendo ao legendário “pai fundador” Sir Neville Marriner (1924-2016).
Quando a orquestra arrumou-se no palco da Sala São Paulo, na última terça-feira, dia 30, na série da Sociedade de Cultura Artística, Bell assumiu uma postura curiosa. Empunhando seu Stradivarius Huberman de 1713 (o mesmo que tocou anonimamente no metrô de Washington, em 2007, para uma matéria do jornal Washington Post que ficou famosa), ele se sentou não em cadeira de orquestra, mas em um banco de piano, ao lado do “spalla” (o exuberante Nick Kendall), com uma estante de partitura só para si.
Mas daí começou a abertura Coriolano, de Beethoven, e a Sala São Paulo foi tomada pelo drama. Não conheço a peça de Heinrich Joseph von Collin que inspirou a música do compositor alemão, mas, nessa hora, isso parecia pouco importante; importante era o senso de urgência e teatralidade – digno do Coriolano de Shakespeare – impregnado na execução da orquestra.
Os que crescemos na era do disco aprendemos a amar a Academy of St Martin in the Fields pela enxurrada de gravações da orquestra com Marriner – por exemplo, a enciclopédica Mozart Edition, para o bicentenário de falecimento do compositor austríaco, em 1991. Houve, evidentemente, uma bem-vinda renovação de efetivos (inevitável em um grupo fundado em 1958), mas a cultura de excelência dos tempos de fundação parece ter se mantido – e se atualizado com as mudanças de concepção e gosto das técnicas interpretativas.
Após um Beethoven cheio de “Sturm und Drang”, veio o Concerto para violino de Tchaikóvski – que certa época foi moda entre os especialistas esnobar, pois, afinal, trata-se de uma peça que comete o “pecado” de comunicar-se com o público de forma imediata.
O fato é que, egresso da primeira turma de músicos de seu país a receberem educação formal sistemática (o Conservatório de São Petersburgo foi fundado apenas em 1862 – catorze anos depois do do Rio de Janeiro, de 1848), Tchaikóvski prorrompeu na arena internacional em 1878 com o primeiro concerto para violino “fora do eixo” a fazer sucesso – até então, o repertório do instrumento concentrava-se no triângulo Itália-Alemanha-França.
Bell entoou gloriosamente todas as memoráveis melodias tchaikovskianas, extraindo uma quantidade aparentemente inesgotável de cores de seu instrumento. Mas a mais bela surpresa foi ver que, além de variegado, seu Tchaikóvski soube, sem perder a intensidade emocional, ser requintadamente camerístico. Seus fraseados conversavam o tempo todo com os instrumentos da orquestra (os diálogos de Bell com os violoncelos revelaram-se especialmente prazerosos), com um refinamento que não nos deixava esquecer que Tchaikóvski, afinal, era um grande mozartiano, e o equilíbrio clássico também se encontrava entre seus ideais.
Equilíbrio que ficou especialmente evidenciado na Sinfonia nº 4, de Beethoven – não por acaso, apelidada por Schumann de “delicada donzela grega” em meio aos dois gigantes nórdicos que seriam a Terceira e a Quinta.
Aqui no Brasil (normalmente, tentando mascarar deficiências de afinação das cordas) não é raro executar-se Beethoven com orquestras de dimensões mahlerianas, enchendo os palcos do teatro com efetivos que parecem tentar reproduzir o número total de músicos residentes em Viena na época do compositor. O resultado, via de regra, é uma maçaroca sonora inarticulada, como a execução de uma peça pianística com o pedal direito apertado o tempo inteiro.
O que se viu na Sala São Paulo, felizmente, foi o oposto: um Beethoven camerístico, vital, em que texturas transparentes mesclaram-se a prodígios de articulação e agógica e, consequentemente, refinamento foi não o oposto, mas sim o complemento indispensável do calor interpretativo.
Cansados da viagem, Bell e Academy não deram bis. Mas pouco importa: sua mensagem musical já tinha sido transmitida com clareza e eloquência.
[Haverá mais uma apresentação de Joshua Bell com a Academy of St. Martin in de Fields hoje, dia 31, às 21h, na Sala São Paulo. Clique aqui para consultar o Roteiro Musical.]
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