Natal feliz é Natal com Claudio Santoro

No tempo da mídia física, o CD consistia em uma das soluções mais cômodas e elegantes para esse problema chamado presente. Hoje, com o formato digital, ele pode ser considerado, de forma metafórica, como uma oferta do artista ao público. Neste sentido, e levando em conta a época do ano em que acontece o lançamento, a música brasileira não poderia receber presente de Natal melhor do que a gravação da obra completa para violino e piano de Claudio Santoro (1919-1989) pelo Selo Sesc.

Santoro é um talento eclético e multifacetado que teve que chegar ao centenário para que o Brasil descobrisse que existia. Em 2019, de forma repentina e desconectada, vários artistas e instituições se mobilizaram para celebrar seus 100 anos de nascimento. E os festejos foram tão ricos que transbordaram para 2020, por meio da edição de gravações feitas no ano passado.

O Selo Sesc destacou-se com duas iniciativas especialmente apuradas – gravadas no paraíso arquitetônico, ecológico e tecnológico que é o Estúdio Monteverdi, de André Mehmari. Se, em Jardim Noturno, um Paulo Szot no auge traz todo seu refinamento à produção vocal do compositor, acompanhado pelo piano sensível de Nahim Marun, Obra completa para violino & piano mostra a relação bem especial do criador com seu instrumento.

 

Filho de imigrantes italianos, Santoro começou a dedilhar o violino ainda na infância, em Manaus. Para ele compôs sua primeira obra (uma singela Sicilienne de 1937, quando o autor não completara ainda 18 anos, que se encontrava inédita, e foi resgatada só agora, para este álbum), assim como um grupo de cinco sonatas que constituem um dos mais robustos conjuntos de obras deste gênero da música brasileira.

Destas, a mais conhecida e gravada é a de nº 4, de 1951, quando ele recém-abjurara do dodecafonismo aprendido com Koellreutter e adotara o credo nacionalista. Além das cinco sonatas numeradas, o disco (se fosse mídia física, chamaríamos de CD duplo, com seus 97 minutos de duração e 24 faixas) inclui uma também até então inédita Sonata 1939, refletindo o gosto inequivocamente afrancesado do compositor na juventude. 

Outra composição que veio à luz pela primeira vez nesta gravação foi a Elegia nº 2 (1986), que forma um variegado e precioso tríptico de miniaturas dedicadas ao duo Valeska Hadelich (violino) e Ney Salgado (piano), e reflete a extrema liberdade que o compositor se permitia no final de sua carreira – enquanto as duas primeiras são atonais, a Elegia nº 3, escrita para ser coreografada pela mulher do compositor, Gisèle Santoro, tem uma melodia quase neorromântica. 

Devemos todos esses “achados” a Alessandro Santoro, filho do compositor, que não apenas é responsável pelo acervo e edição das obras do pai, como ainda possui uma sólida técnica pianística, moldada no Conservatório Tchaikóvski, de Moscou (ele também é um cravista de mão cheia, como suas preciosas lives dedicadas a Bach na quarentena demonstraram). Ao lado de Emmanuele Baldini (que já comprovou sua identificação e dedicação à música brasileira em discos devotados a compositores dos séculos XIX, XX e XXI), ele realiza um álbum fundamental para nosso país e nossa música. Para dar conta das diversas personalidades assumidas por esse camaleão musical que foi Santoro, é necessário não apenas técnica para lidar com o virtuosismo da escrita, como cultura musical para reconhecer e transmitir as diversas linguagens e estilos que o compositor praticou – e isso, a dupla de intérpretes exibe de sobra. Um daqueles presentes de Natal que nos acompanham não apenas pelo ano seguinte, como pelo resto da vida.

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