Hoje em dia, só o privilegiado público da ópera tem liberdade para aplaudir durante e ao final de uma ária. No século XIX, os que assistiam a um recital de piano, por exemplo, aplaudiam não só entre os movimentos de uma sonata como também em momentos culminantes de um movimento. Ou seja, interrompiam com aplausos o fluxo musical – algo inimaginável no século XXI.
Também hoje em dia ouvimos silenciosamente ciclos inteiro de prelúdios, aplaudindo só no final do derradeiro. Como o opus 28 de Chopin, ou os 24 dos dois livros de prelúdios de Debussy. Também só aplaudimos ao final de uma execução dos Études opus 25 de Chopin, ou dos Études de Debussy e mesmo os de Ligeti.
Já perdemos a memória dos tempos em que prelúdios eram música viva, vivíssima. No século XIX, os grandes pianistas costumavam abrir seus recitais tocando... um prelúdio (muitas vezes improvisando mesmo um prelúdio), com dois objetivos: 1) chamar a atenção do público de que a função estava prestes a começar; e 2) conhecer um pouco o piano que tinha diante de si (não havia o cuidado de o pianista conhecer e namorar por algumas horas prévias o instrumento no qual iria tocar no “recital”).
Um costume que os grandes pianistas mantiveram até a primeira metade do século XX. Rachmaninov, um dos grandes pianistas de seu tempo (além de extraordinário compositor), escreveu em 1931 a seu amigo e também compositor Nikolai Medtner estas hilárias linhas:
”Toquei minhas Variações [22 variações sobre um tema de Corelli, opus 42] cerca de quinze vezes, mas dessas quinze apresentações apenas uma foi boa. As outras foram desleixadas. Não consigo tocar minhas próprias composições! E é tão chato! Eu me guio pelas tosses do público. Sempre que a tosse aumenta, pulo a variação seguinte. Sem tosse, toco na ordem correta. Em um recital, não me lembro onde, alguma cidade pequena, a tosse foi tão violenta que toquei apenas dez variações (de 22). Meu recorde aconteceu em Nova York: toquei 18 variações.”
Liberdade, liberdade. Esta é a palavra para qualificar o modo como a música soava viva – e os músicos também pareciam vivos. A regra atual é respeito excessivo ao texto musical, ânsia de reproduzir o mais fielmente possível a partitura (que, cá entre nós, pouco passa de um guia de navegação, mais ou menos preciso conforme a característica do compositor).
Foram estas pensatas que me levaram a adorar um álbum recém-lançado (Hänssler) da pianista búlgara Dora Deliyska, 42 anos, radicada em Viena. Intitula-se “Chopin, Debussy, Ligeti & Kapustin: Études & Préludes”.
Direto ao ponto. Ela se atreve a exercer o direito pleno do intérprete de construir uma nova “obra de arte”, como ela mesma afirmou em entrevista, a partir de um mosaico de dezenas de peças, os estudos e prelúdios dos quatro compositores citados.
Só por livrar-se da canga de “museu” Dora Deliyska já merece muitos elogios. E também por acertar incrivelmente no ciclo dos doze estudos assinados a seis mãos por Chopin, Debussy e Ligeti
Salada de frutas musicais sem sentido?, perguntarão os mais céticos. Ao contrário. Dora explica, nesta mesma entrevista: “É notável o quanto e com que frequência os compositores se relacionam uns com os outros e quais conexões se pode descobrir como intérprete entre as obras individuais. Para examinar mais de perto essas conexões, concentrei-me em dois gêneros ao criar o programa, a saber, os Estudos e Prelúdios de Chopin, Debussy, Ligeti e Kapustin. Ilumino diferentes métodos de composição e como eles se desenvolveram ao longo do tempo. As obras executadas são parcialmente virtuosas ou impressionistas, parcialmente poéticas ou jazzísticas”.
Antecipando: Dora “construiu” dois novos ciclos – um de estudos, outro de prelúdios. E o que é melhor: o primeiro, de estudos, soa integrado, apesar das diferenças, que por sinal só o tornam ainda mais atraente. Olhe só como ela explica este ciclo: “Os quatro compositores estão intimamente ligados uns aos outros. A primeira parte do programa consiste em doze estudos selecionados de Chopin, Debussy e Ligeti. As peças são dispostas em intervalos – de uma nota repetida (Ligeti chama isso de 'continuum', eu chamo de intervalo 'zero') ao semitom (em Pour les Degrés chromatiques de Debussy), passando por tons inteiros – terças, quartas, quintas, sextas, sétimas e até a oitava – e desenvolvendo uma estrutura de construção e tensão musical. Por fim, ouve-se o estudo Pour les accords de Debussy, que considero como uma combinação de intervalos”.
A audição dos doze estudos assim distribuídos torna-se impactante também pela adequação dos excelentes recursos pianísticos de Dora. O segundo ciclo, de doze prelúdios, é mais previsível. Ela apenas justapõe blocos de prelúdios: começa com 5 de Chopin, depois 4 de Debussy e termina com 3 de Kapustin. Só não é decepcionante porque ela os interpreta em alto nível. Ouvi-los após o feérico primeiro ciclo, de estudos, é frustrante.
Mas a pianista garante que a audição completa dos dois ciclos sem interrupção constitui “uma obra de arte, ou um ciclo de piano em si”. Por que Kapustin encerrando o ciclo das 24 peças? Ela responde na entrevista citada: “Seus prelúdios me fascinam com suas harmonias de jazz e ritmos complexos. O compositor ucraniano foi um excelente pianista concertista que escreveu muitas obras no estilo jazz. Para mim, como pianista com formação clássica, tocar essas obras é muito divertido. Kapustin anotou tudo com detalhes meticulosos, até mesmo a parte que soa como uma improvisação”.
Talvez a razão mais decisiva e desafiadora num projeto desses seja o risco que implica. Pode dar certo, mas é uma corda bamba que arranha qualquer carreira, se mal sucedido. Mas, cá entre nós, este não é o sinal inequívoco de que nestes casos músico e música estão vivos, vivíssimos?
Só por livrar-se da canga de “museu” Dora Deliyska já merece muitos elogios. E também por acertar incrivelmente no ciclo dos doze estudos assinados a seis mãos por Chopin, Debussy e Ligeti. Não por acaso, o polonês primeiro improvisava seus estudos/prelúdios e depois os colocava no pentagrama; Debussy então declarou guiar-se tão-somente pelo som, pelas sonoridades; e Ligeti? Bem, acredito que ele teria adorado esta “salada de frutas”. Até senti falta de seu “rock húngaro”.
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