Marc-André Hamelin é um pianista bastante sui generis. Aos 61 anos de idade, este canadense de Montreal radicado nos EUA não parece ter quaisquer tipo de limitações técnicas. Assim, seu desafio é da ordem intelectual. Embora capaz de ser igualmente relevante e interessante no repertório standard, ele tem demonstrado especial interesse em exumar obras negligenciadas de compositores menos tocados e trazê-las à luz.
Talvez por isso na última quarta-feira, dia 29, na série da TUCCA, a Sala São Paulo recebesse um público abaixo do merecido por uma estrela de sua magnitude. Quem compareceu, contudo, teve o privilégio de ser conduzido em uma jornada estética estimulante por um guia inspirador e inspirado.
Hamelin abriu seu recital sem intervalo com a grandiosa Sonata em mi bemol menor, do parisiense Paul Dukas (1865-1935). Para minha geração, Dukas foi um dos primeiros – se não o primeiro – compositores da chamada “música clássica” a ser conhecido, ainda na infância, graças às estripulias de Mickey em O Aprendiz de Feiticeiro, na animação Fantasia, de Walt Disney.
Crítico musical e professor do Conservatório de Paris, Dukas não deixou muitas obras além do poema sinfônico inspirado em Goethe. Ele não apenas passou os anos finais de vida em silêncio composicional, como ainda se dedicou a destruir várias de suas partituras que não considerava dignas de serem ouvidas.
Para teclado, ficaram duas peças ambiciosas: Variações, interlúdio e final sobre um tema de Rameau (1903) e a sonata (1901) – ambas escritas para Édouard Rissler, afamado intérprete beethoveniano. A sonata para piano solo foi um gênero pouco praticado por autores franceses e, mais do que qualquer modelo local, é a sombra do mestre de Bonn que se faz ouvir inequivocamente detrás da obra de Dukas, cuja duração e estrutura, em quatro movimentos, parece ecoar as ambições da Hammerklavier. Isso para não falar na própria retórica da peça, Kampf und Sieg – luta e vitória, o senso de viagem triunfal tão caro a Beethoven. Talvez o momento mais interessante, do ponto de vista musical, seja o scherzo (Vivement, avec légèreté), que inclui uma surpreendente passagem de escrita em fuga. Há lampejos da escrita pianística de Saint-Saëns, ao qual a sonata é dedicada e, sobretudo, do virtuosismo extremo de Liszt e Alkan (não por acaso, outro compositor negligenciado bastante defendido por Hamelin), fazendo-se notar sobretudo nas dimensões sinfônicas de seu final.
Neste cipoal de notas e ideias musicais, que por vezes pode parecer excessivamente denso e prolixo, só é possível se mover dirigido por uma mente tão clarividente quanto a de Hamelin. O intérprete possui uma ideia claríssima da arquitetura da peça, e todos os recursos para materializá-la. Organiza seus planos sonoros e, tendo esse ordenamento em mente, coloca a serviço dele uma paleta de timbres aparentemente inesgotável, uma agilidade e muscularidade hercúlea, quando requerido (o que ocorre com frequência na peça de Dukas), e prodígios não menos notáveis de lirismo e delicadeza.
Lirismo e delicadeza que se fizeram notar sobretudo nos itens seguintes do programa: a Barcarola nº 1 em lá menor, op. 26 e o Noturno nº 2 em si maior, op. 33, de um compositor francês da geração anterior à de Dukas, Gabriel Fauré (1845-1924). Se na peça anterior Hamelin encarnou o titã, o atleta das grandes escaladas, aqui ele foi o ourives, o artesão que trata cada miniatura como uma joia, acarinhando e polindo seus mais ínfimos detalhes.
No bloco final, Hamelin vestiu a casaca do compositor-pianista – tradição que nossa época, com sua ênfase na especialização, resolveu descartar, mas que o artista empenha-se em atualizar. Curiosamente, ele não escreveu a Suite à l'ancienne, de 2020, tendo em vista seus próprios talentos pianísticos, mas sim sob encomenda de outra artista do teclado, Rachel Naomi Kudo. Poucas peças poderiam sintetizar tão bem o ecletismo e ecumenismo de Hamelin: em seis movimentos, ela evoca o conceito barroco de suíte como um conjunto de danças. Porém não se trata, aqui, de simplesmente estilizar formas musicais do século XVIII, e sim de trabalhá-las à luz de tudo que aconteceu depois – cada movimento é tonal, porém seu gestual, linguagem harmônica e gramática pianística dialogam constantemente com as músicas dos séculos XIX, XX e XXI.
Camaleônico, Hamelin trouxe ao palco outros personagens em cada um de seus itens de bis. O pianofortista do século XVIII fez-se presente no Rondó em dó menor de Carl Philipp Emmanuel Bach (1714-1788), filho de Johann Sebastian, executada com verve, humor e, sobretudo, um desfrute da retórica de surpresas e contrastes impactantes que faz da música de Carl Philipp um fenômeno tão singular.
E então veio Debussy. Bom gosto no uso dos pedais e um cuidado extremo ao tornear cada frase fizeram de Reflets dans l’eau, do primeiro livro das Images, uma experiência onírica, daquelas que ficam reverberando na mente e no coração muito tempo depois de a última nota soar fisicamente no espaço. Merci, Hamelin!
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.