Ópera ‘Aleijadinho’, de Ernani Aguiar, estreia ao ar livre em Ouro Preto

por Nelson Rubens Kunze 01/05/2022

Composta sobre libreto de André Cardoso, Aleijadinho segue agora para o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, onde será apresentada nos dias 14, 16, 18 e 20 de maio

Na sexta-feira dia 29 de abril, à noite, uma multidão tomou a praça em frente à Igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto, para assistir à estreia da ópera Aleijadinho, do compositor Ernani Aguiar. A produção é do Palácio da Artes de Belo Horizonte (onde a ópera será reapresentada nos próximos dias 14, 16, 18 e 20 de maio) e contou com a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, o Coral Lírico de Minas Gerais e a Cia. de Dança do Palácio das Artes. No elenco atuaram o barítono Johnny França (que fez Aleijadinho), o tenor Mar Oliveira (Manuel Francisco, filho de Aleijadinho), a soprano Luanda Siqueira (a nora Joana), o tenor Guilherme Moreira (Tomás Antônio Gonzaga), o barítono Licio Bruno (Lobo de Mesquita), o barítono Pedro Vianna (Alvarenga Peixoto) e o baixo Mauro Chantal (Vicente Ferreira). A direção cênica foi de Julianna Santos e a direção musical e regência de Silvio Viegas.

Antes de mais nada, quero registrar que é um grande acontecimento – e emocionante! – assistir a uma ópera sobre Aleijadinho e sua época tendo como cenário a cidade de Ouro Preto, e mais especificamente a Igreja de São Francisco de Assis, que foi por ele desenhada e que ostenta algumas de suas obras-primas. É uma importante homenagem ao brilhante mestre barroco e a essa cidade tão especial, patrimônio cultural da humanidade. 

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, nasceu em Ouro Preto (então Vila Rica), em 1738, e ali também faleceu, em 1814. Apesar da doença que desfigurou o seu corpo e comprometeu seus pés e mãos, o artista realizou uma impressionante obra de repercussão internacional, na qual se destacam os 12 profetas no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo.

Aleijadinho foi contemporâneo da Inconfidência Mineira, revolta separatista contra a exploração da colônia pela corte de Portugal. O movimento, como se sabe, foi descoberto e sufocado, seus participantes deportados e Tiradentes, seu líder, enforcado e esquartejado.

Para a ópera, o compositor Ernani Aguiar – que esclarece de antemão que não se preocupa com inovações artísticas –, escreveu uma música tonal, de elaborado artesanato composicional e inspirada veia melódica. Eventualmente, entre atos ou cenas, Ernani incluiu lindos interlúdios que lembram antigas serenatas ou modinhas da música brasileira. O espetáculo, que dura cerca de 2 horas, flui bem.

O libreto foi elaborado por André Cardoso, que, conforme declarou, fez profunda pesquisa para garantir a autenticidade dos fatos. Para conferir mais ação ao drama, Cardoso cria uma parte ficcional que é a convivência de Aleijadinho com os inconfidentes (não há registro histórico disso, mas não deixa de ser possível). 

No programa, Cardoso e Aguiar escrevem: “Para fazer o amálgama da ficção com a realidade no libreto, foram incorporadas citações de textos originais, como o de um lundu mineiro do século XVIII, registrado pelos viajantes Spix e Martius, e um trecho da 11ª das ‘Cartas Chilenas’, de autoria do próprio Tomás Antônio Gonzaga. No final do segundo ato, estão os textos bíblicos esculpidos por Aleijadinho nos pergaminhos das estátuas de Isaías, Jeremias e Habacuc em Congonhas do Campo. No terceiro ato o coro masculino canta trechos de ‘A uma despedida’, Lira IX da Parte III de ‘Marília de Dirceu’, de Tomás Antônio Gonzaga, e de ‘A lástima’, poesia de Alvarenga Peixoto. A cena final remete à tese da historiadora Isolde Venturelli, que na década de 1980 sugeriu que as estátuas dos profetas representariam alguns dos inconfidentes. Ainda que seja apenas em tese, a ideia serviu para estruturar a cena final”.

A ideia é boa, ainda que, em algumas passagens, os embates políticos ocorridos na Ouro Preto de então coloquem Aleijadinho – que não participou da conspiração – em um plano secundário. No todo, o espetáculo transmite a ideia do genial artista lutando contra as adversidades que a vida lhe impõe, o paulatino agravamento de sua doença e a sua crescente solidão. E paralelamente, em tom às vezes heroico, a mensagem libertária dos inconfidentes. 

Foi ótima, impactante e bonita, a estrutura cenográfica criada por Renato Theobaldo, em que imagens das obras de Aleijadinho eram projetadas sobre um tule transparente diante da fachada da imponente igreja barroca. 

O maestro titular do Palácio das Artes Silvio Viegas comandou o espetáculo com bom ritmo e fluência. Também foram acertadas, por sua eficiência e resultado, as soluções adotadas pela diretora cênica Julianna Santos. A sonorização de vozes e orquestra funcionou bem. 

Além de teatro, ópera é voz, e as vozes contribuíram decisivamente para o sucesso da produção. Em um elenco no geral equilibrado e competente, destaco Johnny França, que fez Aleijadinho com grande convicção, e a soprano Luanda Siqueira, que interpretou o papel da nora do artista.

A estreia de Aleijadinho dá-se em um momento especial da produção lírica nacional, já que nos últimos meses tivemos algumas novas óperas sendo compostas e encenadas, como O engenheiro, Navalha na carne, Homens de papel e, na semana que vem, O café. Quem venham muitas outras mais!


p.s. Antes da estreia da ópera na praça, em clima de merecida celebração, autoridades, patrocinadores e outras personalidades participaram de uma cerimônia na Secretaria de Cultura de Ouro Preto (que, aliás, fica na casa em que viveu Tomás Antônio Gonzaga). Na sua fala, o compositor Ernani Aguiar reivindicou, com voz exaltada, que a obra-prima de Aleijadinho em Congonhas do Campo deve ser substituída por réplicas e abrigada o mais breve possível em um museu: “O Davi de Michelangelo, que é de mármore, há anos foi substituído por uma réplica – o original está no museu da Galleria dell’academia. É assim que se faz no mundo inteiro! E as obras do Aleijadinho são em pedra-sabão...” Ernani disse que, se ficarem expostas ao tempo, em mais duas gerações as esculturas estarão destruídas. Na sequência, o secretário de Cultura do estado de Minas Gerais, Leônidas Oliveira, afirmou que a Secretaria já tem o museu, que as réplicas dos profetas de Aleijadinho já estão construídas “com a melhor técnica 3D existente” e que agora se iniciará a transposição dos originais. 

Veja abaixo fotos da produção de Aleijadinho (fotos: Revista CONCERTO)

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Ópera Aleijadinho (Revista CONCERTO)

Ópera Aleijadinho (Revista CONCERTO)

Johnny França e Luanda Siqueira em ação (Revista CONCERTO)

O libretista André Cardoso, o maestro Silvio Viegas e o compositor Ernani Aguiar (Revista CONCERTO)
O libretista André Cardoso, o maestro Silvio Viegas e o compositor Ernani Aguiar (Revista CONCERTO)

[Nelson Rubens Kunze viajou a Ouro Preto e assistiu à ópera Aleijadinho a convite da Fundação Clóvis Salgado.]
 

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