Com concepção e direção geral do cineasta Kiko Goifman, Maria de Buenos Aires comemora os 110 anos da casa
Única ópera de Astor Piazzolla, de quem se festejam os 100 anos de nascimento, Maria de Buenos Aires retomou a atividade lírica do Theatro Municipal de São Paulo, suspensa desde o início da pandemia. A encenação também comemora o aniversário do teatro, inaugurado exatamente em 12 de setembro, há 110 anos.
Com a linguagem do tango, a ópera, ou operita como a chamou Piazzolla, conta a trajetória de vida e morte da prostituta Maria de Buenos Aires, sua redenção e renascimento, em uma alegoria da história do tango do início do século 20 e de sua renovação com o tango nuevo de Piazzolla. Não há propriamente uma linha narrativa. O libreto do uruguaio Horacio Ferrer mescla realidade com fantasia, em passagens místicas e poéticas.
Dirigida pelo cineasta Kiko Goifman, estreante em óperas, a montagem, que teve a participação também do diretor cênico Ronaldo Zero, é boa e bem resolvida. O grupo de 11 instrumentistas, formado pelos músicos da Orquestra Sinfônica Municipal acrescido de bandoneón e guitarra, fica do lado esquerdo do palco. Do lado direito, mais ao fundo, uma mesa e duas cadeiras. E durante o espetáculo, imagens pré-gravadas de cenas noturnas de metrópoles como Buenos Aires ou São Paulo e filmagens ao vivo dos artistas em ação, se alternam em projeções sobre uma grande tela que toma todo o fundo do palco; outras imagens aparecem sobre uma tela menor localizada atrás da mesa. No geral, o palco escuro e as imagens em sucessão acelerada combinadas com o caráter rítmico da música conferem uma atmosfera de tensão e desesperança.
A soprano Catalyna Cuervo fez uma excelente Maria, de timbre muito adequado, com personalidade e entrega. O barítono Gustavo Feulien, se não acompanhou com a mesma desenvoltura, também não decepcionou. E foi muito boa a atuação do Duende feito pelo ator Rodrigo Lopez, com voz e dicção claras e boa presença cênica. Participou também um pequeno coro de membros do Coral Lírico.
O espetáculo contou com as mulheres da Daspu (grife das prostitutas da ONG Davida) Betania Santos, Dannyele Cavalcante, Elaine Bortolanza e Lua Negra, com ricos figurinos, em passagens de conjunto ou no espaço da mesa, aí em cenas que aconteciam paralelamente à ação. A montagem também incluiu os artistas circenses Wallace Kyoskys e Robson Cruz, com skyrunners. Mas o diferencial foram as cenas com as ótimas intervenções de três dançarinos do Balé da Cidade – Grécia Catarina, Uátila Coutinho e Yasser Alejandro.
Kiko Goifman foi hábil na junção de todos os elementos, muitas vezes simultaneamente, de forma apropriada e em consonância com as múltiplas camadas e sugestões do libreto. A montagem traz boas soluções cênicas que amarraram bem os diferentes quadros da ópera. E foi boa também a atuação da orquestra, sob direção ao mesmo tempo enfática e sensível do maestro Roberto Minczuk.
A sonorização, comum nessa ópera que se aproxima do universo do cabaré musical, funcionou bem. Apenas algumas passagens, normalmente aquelas com dinâmicas mais fortes, ficaram um pouco prejudicadas, quando o som que vinha direto do palco se misturava com o som das caixas acústicas.
Dada a pandemia, o título, por suas características camerísticas, também foi uma escolha muito apropriada. Seguindo protocolos de segurança sanitária, o teatro está com plateia reduzida e diversas áreas de circulação fechadas (o Theatro Municipal, contudo, ainda não exige o comprovante de vacinação).
O espetáculo ainda tem récitas nos dias 15, 16 e 17, às 19h, e dias 18 e 19, às 17h, infelizmente apenas para público presencial, o que é uma pena. Como muitos outros teatros e orquestras públicos, seria desejável que também o Municipal fizesse a transmissão pela internet – estamos ainda em plena pandemia e o teatro promoveria a democratização de sua produção.
[Adendo em 13/09 às 12h: O Theatro Municipal informa que não haverá streaming do espetáculo, mas que o diretor Kiko Goifman preparará uma edição da obra em formato de filme, que será então disponibilizada no YouTube.]
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