Personagem complexo e polêmico, central no debate sobre a escravização e suas consequências no Brasil, engenheiro André Rebouças é tema de ópera do compositor Tim Rescala
Quando o elenco da montagem da ópera O engenheiro, de Tim Rescala, se enfileirou para receber os aplausos no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no último dia 18 de outubro, se tornava ainda mais concreta e evidente a importância daquele momento: das nove pessoas em cena, cinco eram negras, entre elas o protagonista. Essa mudança em termos de representatividade étnico-racial que vemos ocorrer na cena lírica diante de nossos olhos – e que desejamos que se aprofunde – já tem sido tema de acalorados debates no que se refere à produção audiovisual de temáticas históricas, por exemplo. Foram marcantes os casos da novela Nos tempos do imperador, da Rede Globo, alvo de críticas pela forma como retratou a escravidão e as pessoas negras, e da série Bridgerton, da Netflix, que propôs uma ruptura das representações ao encenar uma sociedade inglesa na qual havia pessoas negras entre a nobreza. A ópera O Engenheiro, por isso, é uma amostra de que todos os envolvidos na concepção e montagem da obra fazem uma contribuição para que a ópera, essa expressão cultural muitas vezes vista como restrita, se conecte ao nosso tempo e, dessa forma, se aproxime de fato das pessoas. Movimento esse que tem se visto em diversas iniciativas de companhias de ópera do mundo.
Interessante é, no caso desta montagem do Theatro São Pedro, que essa intenção se manifesta não apenas em ações pontuais – palestras e eventos sociais, por exemplo –, mas num arco mais amplo de escolhas dentro de todo o processo de um projeto. A própria opção pela obra e a forma como foi levada à cena fazem o conjunto orquestral da centenária casa de espetáculos sul-rio-grandense posicionar-se com relação às temáticas que estão na ordem do dia. O personagem central da história é André Rebouças (1838-1898), engenheiro e inventor cujas crenças políticas nos parecem, aos olhos do hoje, contraditórias: negro, era abolicionista e monarquista com igual fervor a tal ponto que partiu para o exílio com a família imperial recém-destronada. Em tempos que a lógica das redes sociais exige engajamentos e ameaça com cancelamentos, é fundamental trazer à cena a história de um personagem dessa complexidade e polêmica, mas ainda assim central no debate sobre a escravização e suas consequências no Brasil.
O libreto da ópera, também elaborado por Rescala, está ambientado na noite de 15 de novembro de 1889, quando a princesa Isabel e o seu marido, Conde D’Eu, sabem dos acontecimentos em curso. Diante da iminência do destronamento de D. Pedro II e de sua herdeira e da instauração da República, chamam o amigo Rebouças para com ele se aconselharem. O compositor usa bem os momentos de canto para assinalar o quanto o personagem protagonista não é plano ou linear, mas alguém com idiossincrasias, contradições e imperfeições que são, no fundo, traços humanos e que historicamente têm rendido belíssimas histórias em forma de obras líricas. A trama tem uma proposta semelhante à que David T. Little propôs para JFK e que mostra a intimidade e os conflitos do casal celebridade John e Jaqueline Kennedy na noite que antecedeu o assassinato do presidente. Assim como no caso da composição de Rescala, há um contexto externo que vai fazendo com que uma tensão surja entre os personagens e assim vamos aos poucos conhecendo traços de cada um – suas virtudes e defeitos, inclusive.
É isso que vemos, por exemplo, no personagem André Rebouças, interpretado pelo barítono David Marcondes. Quando ele canta a ária na qual o personagem título conta sobre o seu sonho de criar uma fazenda nacional na qual escravizados recém-libertos e colonos pudessem trabalhar, temos uma mostra da potência dessa história sobre alguém que pensava sobre seu tempo. O engenheiro vinha de uma família de origem baiana e já era a segunda geração de não escravizados, o que talvez embase muito de suas visões. Nas apresentações do cantor-ator, nuances e sutilezas entremeavam um canto potente que dava ao papel esse tom de uma pessoa que se situa entre idealismo e um certo pragmatismo. Afinal, Rebouças é uma referência importante quando se trata do pensamento no século XIX sobre um projeto para aqueles que não só foram deixados à própria sorte com o fim da escravidão no país, como foram estigmatizados e mesmo cerceados.
Outra personagem central da trama, a Princesa Isabel ganha bastante espaço em cena. Ainda que isso possa parecer para muitos um desvio do foco narrativo, que deveria centrar-se sobre o personagem título, essa é uma forma de realçar justamente outra dimensão da personalidade de Rebouças. Isso fica claro no momento em que ele adentra a casa da então herdeira presuntiva do trono brasileiro e a saúda como “Isabel I”. A soprano Yasmini Vargaz, que deu vida à princesa, também teve atuação marcante: o canto foi potente e cativante; e a interpretação deu vida a outra personagem contraditória de nossa história – terá mesmo ela sido a “Redentora” por ter assinado a Lei Áurea ou apenas alguém que livrou a oligarquia nacional dos escravizados pelos quais deveriam ter sido responsáveis? Talvez no caso de Isabel estejam as únicas ressalvas que faria com relação ao belo e adequado figurino: o vestido de saia volumosa e longa dificultava a movimentação da atriz – terá sido intencional? –; e a maquiagem carregada nos olhos não deixava transparecer plenamente a forte expressão facial de Yasmini em cena. De resto, o figurino, de responsabilidade de Antonio Rabàdan, e a cenografia de Rodrigo Shalako eram excelentes. As performances dos demais integrantes do elenco e o desempenho da orquestra também foram evidências de um conjunto de acertos.
Em suma, tanto a composição quanto a montagem são indicativas de que houve muito esforço e um conjunto de escolhas que levaram a resultados de grande qualidade, o que prova o quanto o trabalho em cooperação entre instituições é um caminho fundamental para o êxito na cena cultural brasileira: é a primeira produção da Academia de Ópera Sinos, do Sistema Nacional de Orquestras Sociais. O projeto é liderado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Funarte. Estarem participando o Theatro São Pedro e sua orquestra é, sem dúvida, também mais um motivo para celebrar. Há que se dizer, porém, que não há nenhuma surpresa, já que a direção artística de Evandro Matté já vem levando, há algum tempo, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) para esse lugar de instituição articuladora e promotora da cultura no Rio Grande do Sul. Ver a Orquestra Theatro São Pedro ir pelo mesmo rumo, portanto, é animador.
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