Osesp, Felipe Lara, Vasily Petrenko e Chostakóvitch: nuances e matizes fora da rotina

Programa com Breathing blocks, do brasileiro, e a Sinfonia nº 4 do compositor russo será repetido nesta sexta-feira, 11, e no sábado, dia 12

 

Uma excelente estreia de compositor brasileiro e uma leitura espetacular de uma obra-prima do repertório internacional: o reencontro do regente russo Vasily Petrenko com a Osesp, na última quinta-feira, dia 10, não poderia ter sido melhor.

Petrenko era um nome ascendente no cenário internacional da regência quando, em 2011, aos 35 anos, veio à Sala São Paulo para comandar uma performance arrebatadora da Sinfonia nº 11, de Chostakóvitch. O então titular da Filarmônica Real de Liverpool estava realizando, na época, o registro integral de todas as sinfonias de seu compatriota – e deixou bastante saudade por aqui.

Catorze anos depois, chegou a hora de Petrenko voltar – agora, aos 49, como diretor musical da Royal Philharmonic Orchestra, de Londres. O programa começou com a estreia mundial de uma peça do sorocabano radicado em Nova York Felipe Lara.

Lara foi um dos sete compositores escolhidos pela Osesp para escreverem obras de dez minutos de duração, celebrando os 70 anos da orquestra. Embora esse tipo de lista sempre esteja inevitavelmente sujeito a questionamento, não há como negar a justiça e a legitimidade da inclusão de um dos mais criativos compositores brasileiros, inserido de forma crescente no cenário internacional – e que seria muito bom ser mais ouvido e tocado por aqui (quando teremos a estreia brasileira do magnífico Concerto Duplo para flauta e contrabaixo que ele estreou em 2021, e que pode ser ouvido neste link #ficaadica) 

Breathing blocks evoca a própria cidade de São Paulo com seus arranha-céus (daí os “blocos que respiram” do título). Lara passa longe, contudo, do pictorialismo ou descritivismo. Sua paleta orquestral imaginativa tem algo da finlandesa Kaija Saariaho, sua mentora, que faleceu enquanto ele compunha a peça. Assim, a celebração da vida e a meditação sobre a morte fundem-se na poética da partitura, tratada por Petrenko com a merecida meticulosidade. Não foi uma mera leitura protocolar de uma obra fadada a jazer nas gavetas, e sim a interpretação de uma peça que merece ganhar as salas de concerto.

Sem intervalo, logo depois da impactante criação de Felipe, veio uma obra-prima do século XX: a Quarta sinfonia de Chostakóvitch. Recuperando o contexto: catapultado ao sucesso internacional com sua primeira sinfonia, escrita aos 19 anos e logo difundida na Europa e nos EUA, Chostakóvitch virou um requisitado compositor para o palco e para o cinema na URSS – trajetória abruptamente cortada, em 1936, com Bagunça em vez de música, virulento editorial do jornal oficial Pravda dedicado à sua ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk. O órgão oficial do regime chamava a ópera de “rude, primitiva, vulgar”, afirmando que numa época “em que nossa crítica – incluindo a musical – jura em nome do realismo socialista, a cena nos apresenta, na obra de Chostakóvitch, o mais rude naturalismo”.

No livro Pisma k Drugu (Carta ao Amigo, de 1993), Isaak Glikman conta o que o compositor lhe contou sobre o episódio quatro décadas depois, em 1974: “a chefia induziu-me a me arrepender e expiar minha culpa. Mas eu me recusei a me arrepender. Ajudaram-me então a juventude e a força física. Em vez de arrependimento, eu escrevi a Quarta sinfonia”. 

A obra chegou a ser programada pela Filarmônica de Leningrado, para ser estreada em dezembro de 1936. Contudo, em meio aos ensaios, o compositor acabou recolhendo a partitura. No mesmo livro, Glikman conta que isso se deveu a um pedido do diretor da orquestra da época – uma saída conciliadora, para evitar que a obra fosse oficialmente proibida.

Condenada ao silêncio, a sinfonia teve seu manuscrito extraviado durante o horrendo cerco nazista a que Leningrado foi submetida durante a II Guerra Mundial. A partir de seus esboços, Chostakóvitch elaborou uma versão para dois pianos em 1946.

Com a denúncia dos crimes de Stálin por Khruschov, em 1953, e a relativa distensão do regime conhecida como “degelo”, muitos dos condenados ao gulag que não pereceram no gelo siberiano foram reabilitados e puderam voltar para casa. Na área cultural, o primeiro Nobel russo de literatura, Ivan Búnin, teve suas obras finalmente editadas na URSS. E as partes instrumentais da quarta sinfonia de Chostakóvitch foram localizadas, permitindo a reconstituição da grade orquestral. Em 1961, finalmente houve clima para Kirill Kondráchin estrear a peça em Moscou, gravando-a no ano seguinte e consolidando-a como um dos monumentos sinfônicos do século XX.

Curiosamente, foi nessa época que a maior influência da sinfonia começou a adquirir a estatura que tem hoje. A década de 1960 é aquela em que a música de Mahler se consolida como base do repertório sinfônico. E a sombra do compositor austríaco paira inequivocamente sobre a partitura do compositor russo.

Embora ser mahleriano hoje constitua quase um clichê, na década de 1930 isso estava longe de constituir uma obviedade. Nesse aspecto, Chostakóvitch foi influenciado sobretudo por seu amigo Ivan Sollertínski (1902-1944), um polímata que, em 1932, escreveu um livro pioneiro sobre Mahler.

Se, com uma hora de duração, ela não chega a ser a mais longa das sinfonias de Chostakóvitch, a quarta é a que emprega o mais vasto efetivo orquestral, com superabundância de madeiras, metais e percussão, além de dupla de harpas e celesta. Piero Rattalino (no livro Sostakovic: continuità nella musica, responsabilità nella tiranide) afirma que a sinfonia “é formada dramaturgicamente por dois poemas sinfônicos ligados por um intermezzo”.

Além de uma teia de citações, referências e reminiscências mahlerianas (como o tema do cuco da Primeira sinfonia, passagens da segunda e da décima – inacabada – e trechos da Canção da Terra e das Canções de um companheiro de viagem), a sinfonia promove contrastes agudos e abruptos de estados de espírito e dinâmica, para concluir em um pianíssimo evocativo do final da Sinfonia Patética, de Tchaikóvski.

O que em outras mãos poderia soar como uma colcha de retalhos bombástica, descosida e incoerente, nas de Petrenko resulta em um discurso sonoro fluente e minuciosamente arquitetado. O regente conduz orquestra e ouvintes pelos labirínticos canais e vielas da Leningrado da década de 1930 como o mais experiente dos guias, sabendo perfeitamente de onde vem e aonde quer chegar.

Assim, os gestos extremados da sinfonia não têm sabor de retórica vazia, e ganham senso e sentido em um mosaico complexo e multifacetado. Com tal estímulo e direção, a própria Osesp parece enriquecer suas possibilidades e buscar nuances e matizes dentro da ampla gama dinâmica requerida por Chostakóvitch e extraída por Petrenko. A orquestra teve uma performance, em todos os aspectos, fora da rotina.

E a boa notícia é que o maestro continua por aqui. Semana que vem, Petrenko rege a Osesp em outra sinfonia de Chostakóvitch: a décima-quarta. E, de quebra, tem o excelente pianista macedônio Simon Trpceski em um blockbuster: o primeiro concerto para piano de Tchaikóvski. #ficaadica.

[A Osesp repete o programa com a obra de Felipe Lara e a Quarta sinfonia nesta sexta-feira, dia 11, e no sábado, dia 12; veja mais detalhes aqui.]

Felipe Lara e Vasily Petrenko após ensaio com a Osesp na Sala São Paulo [Reprodução/Facebook/FelipeLara]
Felipe Lara e Vasily Petrenko após ensaio com a Osesp na Sala São Paulo [Reprodução/Facebook/FelipeLara]

 

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