Concepção do programa, ao acoplar as peças mais desafiadoras na primeira parte e jogar os dois hits para o final, manteve o público alerta e interessado na Sinfonia nº 2 de Bernstein, obra raramente tocada por aqui
Concerto bom é concerto no qual a plateia permanece ligada no que acontece no palco. Mesmo com música em estreia mundial. Revolve, do compositor norte-americano Andrew Norman, 45 anos, encomendada pela Osesp em 2024 para comemorar seus 70 anos, teve sua estreia mundial nos três concertos da semana passada da Osesp. E, coisa rara, estabeleceu contato imediato com o público que lotou a Sala São Paulo primordialmente para curtir a Rhapsody in Blue de Gershwin.
Com justa razão. Foram 10 minutos atentamente acompanhados por ouvidos e olhos. Norman trabalha com círculos que se vão estendendo à orquestra inteira a partir de uma nota longa emitida pelos violinos que vai se espalhando pelos demais naipes, em círculos concebidos como sequências nasce-cresce-morre. A nota passeia pela orquestra, levando não somente nossos ouvidos, mas também os olhos, a percorrer e se admirar com a riqueza de timbres que o maior instrumento inventado pelo homem possui.
Procurei fazer uma descrição simples da peça para mostrar como Revolve é capaz de estabelecer mesmo contato imediato com o público. O concerto foi transmitido na sexta-feira, então é possível ouvi-la:
Outro detalhe importante do concerto de sábado: sua concepção. Ao acoplar as peças mais desafiadoras na primeira parte e jogar os dois “hits” para o final (a Rhapsody e as Danças sinfônicas de West Side Story de Bernstein), manteve o público alerta. A ponto de escutar com atenção a excelente interpretação da Osesp da Sinfonia nº 2 de Bernstein, obra raramente tocada por aqui.
É uma das mais instigantes e atrevidas de suas criações, de 1949. Ele a compôs impactado pela leitura do poema A era da ansiedade, publicado dois anos antes, 1947, por W.H.Auden. Não por acaso, o poema fala de quatro pessoas angustiadas com a ausência de sentido da vida. Em seus seis movimentos, eles vão até um bar até que ele feche. Em seguida vão de táxi, cabisbaixos pela perda do “pai colossal”, até o apartamento de um deles, onde rola uma festa regada a sexo – tudo termina com a chegada de um novo dia, em que a solidão volta a assombrá-los.
Fazia sentido em 1947/49. A atmosfera de apreensão era vivida pela humanidade no momento em que se desenhava a Guerra Fria, vetor que tensionou o planeta até o fim da União Soviética, em 1989. Possivelmente a mesma apreensão que vivemos hoje, no planeta, com o caos trumpiano se tornando cada vez maior e perigoso.
De novo, o público permaneceu atento a uma obra de 35 minutos que desafia os ouvidos. Vale lembrar o domínio absoluto de seu ofício por parte do fabuloso pianista canadense Marc-André Hamelin. Aos 63 anos, vive um momento especial, em que combina plenas condições físicas e amadurecimento mental para continuar deslumbrando sobretudo em repertórios desafiadores como a Sinfonia e muito à vontade em Gershwin.
A Rhapsody in Blue de Gershwin e as Danças sinfônicas de West Side Story, de Berntein mantiveram o público ainda mais ligado na segunda parte.
Sobre a Rhapsody, que Bernstein tantas vezes solou e regeu do piano, com muito sucesso, ele mesmo fez uma observação que parece ácida mas acaba sendo um elogio à obra, em seu livro The Joy of Music, de 1959: “Não é uma composição de verdade, no sentido de que tudo que acontece nela parece inevitável, ou melhor, é até bonita deste jeito. Você pode cortar qualquer parte sem afetar o todo. Você pode mudar de lugar as seções, cortar uma ou mais, acrescentar cadências, tocá-la com qualquer combinação de instrumentos ou no piano solo (...). E na realidade costuma-se fazer isso diariamente. E ela ainda é a Rhapsody in blue”.
Ela soa como um pot-pourri? Sim. Como as Danças sinfônicas de Bernstein, que são assumidamente pot-pourri. Isso não as torna menores. Ao contrário, pertencem ao domínio das obras capazes de atrair novos públicos à sala de concerto.
Uma observação final: Thierry Fischer e a Osesp vivem um momento especial. O clímax do concerto de sábado aconteceu na primeira parte, com a ótima Revolve e a densa Sinfonia nº 2 de Bernstein. Ambas exigem dos músicos e do regente precisão, expressividade. Numa palavra, musicalidade. Quando isso acontece, palco e plateia unem-se na mágica da música.
![O pianista Marc-Andre Hamelin durante o concerto com a Osesp na Sala São Paulo [Reprodução/FacebookOsesp]](/sites/default/files/inline-images/w-hamelin_osesp.jpeg)
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