“O que Mozart diria ‘disso’?”, perguntou uma senhora a uma amiga no final do concerto do sábado, dia 2, à tarde, na Sala São Paulo. A resposta foi direta: “Ele ficaria horrorizado!”.
Presenciei este diálogo no momento em que boa parte do público ainda aplaudia a Osesp, o excepcional pianista Jason Hardink, Cynthia Millar, que pilotou o teclado das Ondes Martenot e o maestro Baldur Brönnimann por uma execução entusiasmante da Sinfonia Turangalîla, uma das obras-chaves não só do compositor francês Olivier Messiaen (1906-1992), mas da música orquestral do século XX.
Ora, imaginemos a cena de Wolfgang assistindo a este monumento. Aposto que ele não se horrorizaria. Ao contrário, se sentiria desafiado por uma obra ao mesmo tempo tão impactante para nossos ouvidos quanto inovadora. Afinal, vale lembrar da extravagante e circense harmônica de vidro, instrumento popular no século XVIII. Quando a ouviu, Mozart imediatamente compôs uma peça para o teclado de copos.
A questão é antiga desde o momento em que Beethoven proclamou que a música não era mais pano de fundo ou apanágio de nobres entediados, mas tinha o estatuto de obra de arte – isso nos inícios do século XX. De uma coisa tenho certeza: o público que naquelas décadas ouvia música não tinha nenhum preconceito em relação à música nova. Aliás, preferia a música nova à que já conheciam. Hoje os algoritmos sofisticaram extraordinariamente a nossa pulsão por ouvir mais do mesmo. Infinitamente, emburrecedoramente.
Voltemos à “Turangalîla”, que na verdade deveria ser classificada como um portentoso concerto para piano e orquestra. As dificuldades técnicas que Messiaen lhe impõe são sobre-humanas. Jason Hardink foi soberano, lembrou-me a facilidade técnica de um Marc-André Hamelin. Os metais, ampliados, devem ter terminado o concerto extenuados. Desde o primeiro e mais importante tema, acordes entoados em fortíssimo por trombones, eles tocam a plenos pulmões em quase todas as intervenções. As cordas impecáveis e as madeiras imaculadas evocando cantos de pássaros.
Nada folcloricamente escancarado, claro. Permeia a obra o mantra messiânico do canto dos pássaros. Ele catalogou mais de 700 cantos diferentes ao longo de sua vida e os aplicou em muitas obras, como o imenso Catálogo dos Pássaros, para piano, obra de quase 3 horas de duração.
O toque exótico ficou por conta das Ondas Martenot, o primeiro instrumento eletrônico, inventado em 1928 em Paris e utilizado por Messiaen e outros compositores franceses na primeira metade do século XX. Ele aparece pouco individualmente, mas enriquece a paleta de timbres dos tutti e também nos momentos líricos, sobretudo nos agudos ainda mais agudos que os dos violinos, por exemplo.
Aliás, TurangalÎla, 85 minutos de duração, 10 movimentos, é um banquete de timbres, criação máxima deste mestre da orquestração. Por isso é obrigatório assisti-la ao vivo, na sala de concertos, é a maneira correta de se surpreender e se maravilhar com estas cores efervescentes, diáfanas nos temas do Amor (no sexto movimento, “Jardim do sono do amor”), majestática em movimentos como o quinto (“A alegria do sangue das estrelas”), ou o Finale, num retumbante acorde perfeito maior.
TurangalÎla é uma palavra em sânscrito: “Lila significa literalmente jogo”, contou Messiaen, “mas o jogo no sentido de ação divina sobre o cosmo, o jogo da criação, da destruição, da reconstrução, o jogo da vida e da morte. Lila é também o amor”. Já Turanga, sempre nas palavras do compositor, “é o tempo que corre, como o cavalo a galope, o tempo que escorre, como a areia na ampulheta (...) é o movimento e o ritmo. Turangalîla quer dizer tudo ao mesmo tempo: canto de amor, hino à alegria, movimento, ritmo, vida e morte”.
No entanto, ele ressalta que buscou na obra “não a alegria burguesa e silenciosamente eufórica de algum homem honesto do século XVII, mas a alegria tal como pode ser concebida por quem apenas a vislumbrou no meio do infortúnio, ou seja, uma alegria sobre-humana, transbordante, que o cega e é desproporcional. O amor ali se apresenta sob o mesmo aspecto: é um amor fatal, irresistível, que a tudo transcende, que suprime tudo que está fora de si, como é simbolizado pelo filtro de Tristão e Isolda”.
Alem de Wagner, Messiaen também evoca musicalmente em alguns momentos dois outros compositores: Ravel e Villa-Lobos.
O primeiro é evocado no “Tema Estátua” inicial, em que os três trombones tocam em fortíssimo três acordes, “uma lembrança inconsciente, talvez, mas muito clara, das ‘Catacumbas’ dos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky na orquestração de Ravel”. Em seguida Messian, ao assistir a performances dos Choros monumentais, qualificou Villa-Lobos como capaz de “maravilhas de orquestração”. A percussão extraordinariamente ampliada em TurangalÎla é sinal disso. E há momentos – brevíssimos – nos quais você quase jura estar ouvindo Villa.
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