Só rindo

por João Luiz Sampaio 19/06/2022

Viva la mamma, apresentado no final de semana no Theatro São Pedro, é um espetáculo divertido, leve, fluente e repleto de verve, com as forças da Academia de Ópera e da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro e artistas convidados, sob excelente direção musical de André dos Santos e direção cênica de Julianna Santos.

O título Viva la mamma foi consagrado a partir dos anos 1970 para designar A conveniência e as inconveniências teatrais, ópera de 1831 de Gaetano Donizetti (há alguma dúvida sobre o autor do libreto, se foi o próprio compositor ou Domenico Gilardoni).

O enredo é uma delícia: uma companhia de ópera às voltas com uma diva insuportável e seu marido falastrão, um maestro e um libretista que parecem não se entender, um empresário preocupado com o sucesso financeiro, um tenor tão inseguro quanto vaidoso, um diretor de palco brutamontes, e um cancelamento por falta de verbas.

E, claro, a Mamma do título – Agata, a mãe da segunda soprano, que faz de tudo para conseguir maior destaque para a filha e acaba ela própria interpretando um papel no espetáculo.

Nada é sério, e tudo é muito bem pensado, em Viva la Mamma. Criar um dueto sobre um dueto, ou uma ária sobre uma ária, por exemplo. Os nomes dos personagens são um capítulo à parte. Scannagalli (abate galos), Biscroma Strappaviscere (arranca vísceras), Luigia Castragatti (castra gatos) e assim vai. E há, claro, a grande sacada cômica: inverter a tradição de ter mulheres interpretando papeis masculinos e fazer com que Mamma Agata seja cantada não apenas por uma voz masculina, mas por um baixo.

E se o recurso dá certo na montagem do Theatro São Pedro é porque Julianna Santos e o baixo Charles Miyazaki evitam o exagero e o histriônico. Esse cuidado dá alguma naturalidade a uma personagem irreal por natureza, e nesse limite está o cômico que Miyazaki explora tão bem.

Cena de 'Viva la mamma', de Donizetti, no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]

Os únicos momentos de maior extravasamento são aqueles em que Agata atua no "espetáculo", irrompendo pelas cortinas do pequeno palco colocado em cena – um dos muitos achados da cenografia de Giorgia Massetani. O mesmo acontece com Procolo, o marido da diva. É no momento da “ficção” do espetáculo, ao qual ele também se junta, que o tenor Rafael Siano liberta de vez o ridículo do papel que interpreta. 

Isso faz com que a ópera se construa em um crescendo, com os personagens nos oferecendo sempre algo novo, em diálogo com o senso de comédia com que Donizetti constrói sua música. 

O restante do elenco teve desempenho muito equilibrado: o maestro de Pedro Côrtes (cuja imitação de célebre regente brasileiro não passou desapercebida); os baixos Andrey Mira e Gustavo Lassen como o diretor de palco e o empresário; a Daria de Alessandra Wingter; o Salzapariglia de Athos Bueno; o Pipetto de Maria Thereza Telles; a Luigia de Alessandra Carvalho; e Felipe Bertol como o tenor alemão, um papel ingrato, pois feito de um jogo de palavras e pronúncia entre o alemão e o italiano que acaba se perdendo. Aliás, teria sido interessante traduzir todo o libreto para o português? A ideia me passou pela cabeça algumas vezes durante a récita de sábado.

Na sátira que faz ao mundo do teatro, Viva la mamma joga na cara algumas coisinhas, como a dificuldade de diálogo entre artistas e instituições e a consequente impossibilidade de um trabalho colaborativo, que vêm sendo discutidas no "pós"-pandemia pela ópera brasileira. Outra questão importante é o papel de academias de óperas para uma cena como a brasileira.

Elas, claro, vêm à mente. Mas confesso que foi bom poder, em meio a tudo que vivemos, sair rindo do teatro. Fazia um bom tempo. 

Leia também
Memória
 Gilberto Tinetti: seriedade, finesse, cultura e gentileza, por Irineu Franco Perpetuo
Notícias Prepare-se: nove destaques da programação da semana
Notícias Nikolay Lugansky volta ao Brasil para tocar concertos de Chopin

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.