Sobre ‘La bohème’, para o Natali

por João Luiz Sampaio 23/12/2024

 

Natali, meu querido amigo, você teria adorado testemunhar o que aconteceu na sexta-feira à noite no Theatro Municipal.

Pouco antes da récita de La bohème, versão em concerto, o tenor americano precisou cancelar sua participação. E chamaram o Giovanni Tristacci para substituí-lo. Ele estava, imagina só, na Sala São Paulo, onde havia acabado de cantar com a Osesp naquele novo horário de concertos à tarde. Mas seguiu para o Municipal para cantar pela primeira vez o papel completo de Rodolfo. É daqueles episódios sobre os quais a gente lê vez ou outra na história da ópera, e sobre os quais conversamos tantas vezes, você deve se lembrar. Na última hora, um cantor sobe ao palco de maneira imprevista. E se consagra. 

Verdade seja dita, o Tristacci a gente já conhecia de muitas outras montagens. Mas o que ele fez na sexta-feira à noite... A quantidade de cores e nuances que ele deu a Rodolfo no terceiro ato... é algo que só um cantor maduro, em um contexto adverso como aquele, seria capaz de empreender e mostrar ao público. De certa forma, acho que, na sexta, o destino fez justiça a ele.

Mas já no primeiro ato o espetáculo mostrou-se especial. Puccini gostava de mostrar no palco o nascimento da paixão. Lembra daquela cena da Turandot, quando o Calaf cai no mais desesperado sofrimento ao primeiro som da voz da princesa? “Ó divina beleza, ó maravilha! Eu sofro, pai, sofro!” Ali sempre me pareceu haver algo de superficial, eu confesso. Mas há também o primeiro encontro do Des Grieux com a Manon Lescaut, ou, vá lá, o de Cio-Cio San com Pinkerton, na Butterfly – se bem que, nesse caso, a crueza da tragédia e da mentira já é de tal forma violenta que a gente não sabe muito bem o que fazer com a beleza daquele dueto no final do primeiro ato, não é?

Mas, na sexta, me peguei pensando no modo como Puccini cria o primeiro encontro de Rodolfo e Mimi. Depois da apresentação, o Márvio (lembra daquela tarde em que ouvimos A Valquíria transmitida do Metropolitan a plenos pulmões na sua casa?) brincou que, se pararmos para pensar com cuidado, os dois não dizem nada de particularmente interessante um para o outro (e então ele cantou o começo da ária de Mimi, daquele jeito dele, e você teria se divertido).

Talvez ele tenha razão. Mas o que me pega ali é o toque das mãos que, no escuro, se procuram. Pode haver metáfora mais bonita para o encontro de duas pessoas? Eu sempre ouvi esse ato com leveza quase divertida, com um sorriso no rosto. Mas na sexta ela soou diferente. Talvez por conta dos andamentos do Minczuk, um pouco lentos, o que deu um outro peso à cena. Mas funcionou. Enquanto ouvia a Gabriella Pace cantar sua ária, construindo cada linha com um cuidado artesanal, me dei conta da intensidade daquele momento – uma intensidade juvenil, mas nunca artificial. Uma intensidade honesta como só pode ser honesto o coração adolescente, seja em que idade for.

Mas deixa eu voltar para o terceiro ato. O que Gabriella e Giovanni fizeram foi muito bonito. Ressentimento, tristeza, ódio, amor, estava tudo ali na voz de dois grandes artistas, e também nos gestos e nos olhares. Só mesmo o público de ópera para entender a verdade da decisão de Rodolfo e Mimi: para que possam viver, e porque se amam, precisam se afastar. Culpa da música do Puccini. Por sinal, você teria achado bonito ver os músicos da Sinfônica Municipal acompanhando com a cabeça as melodias, se emocionando junto com os cantores e com o público. 

E foi muito bom ouvir os outros cantores, Michel de Souza, o Marcello, com um controle tão preciso do texto e da emoção, lado a lado com a Musetta da Raquel Paulin, jovem, divertida, descompromissada; Johnny França cantou muito bem Schaunard e Andrey Mira foi Colline (cá entre nós, nunca entendi direito por que Puccini achou uma boa ideia aquela ária dele sobre o casaco). E, Natali, que prazer enorme foi ver Sandro Cristopher e seu talento de ator de volta ao palco da ópera, cantando Benoît e Alcindoro. Uma homenagem bonita.

É muito ruim, Natali, pensar que esta é a última mensagem que te escrevo. Repórter fenomenal que era, você sempre soube ouvir – e a mim, o fazia com enorme generosidade, não importa o quão ridícula a juventude me fizesse soar, mesmo nos meus tempos de Rodolfo e Mimi, quando recorria a você em busca de conselhos. Talvez porque seu coração também fosse adolescente, pronto a se apaixonar, a se emocionar, e a se espantar, como se fosse a primeira vez, com a beleza da música que ouvia. E com a beleza que ainda encontrava no mundo.

O Marcello, ao reencontrar Musetta, canta que a juventude não estava morta.

A sua nunca esteve, meu amigo.

Final da apresentação de 'La bohême', de Puccini, no Theatro Municipal de São Paulo [Revista CONCERTO]
Final da apresentação de 'La bohême', de Puccini, no Theatro Municipal de São Paulo [Revista CONCERTO]

 

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